Análise:
Trash – A Esperança Vem do Lixo
(Trash / 2014 / Brasil) dir. Stephen
Daldry
por
Lucas Wagner
Construindo sua
carreira a partir de adaptações literárias, Stephen Daldry consegue ser aquele
tipo de cineasta versátil a ponto de nunca apresentar uma constância temática
ou mesmo visual, o que revela uma habilidade rara, adequando-se mais ao que propõe
o romance do que a uma assinatura própria. Raro também é como o diretor ainda
não realizou um filme necessariamente ruim, embora só tenha alcançado a
excelência duas vezes, com As Horas e
Billy Elliot. Esse seu novo trabalho,
Trash – A Esperança Vem do Lixo,
também não chega a ser um de seus melhores, mas ainda assim possui virtudes que
o destacam, ainda mais no momento em que vive o Brasil.
Roteirizado por Richard
Curtis a partir do romance de Andy Mulligan, o longa conta a história de três
garotos que moram numa favela no Rio de Janeiro e se veem em uma situação perigosa,
perseguidos por uma polícia corrupta, quando encontram uma carteira com
dinheiro e uma estranha chave, pertencentes ao misterioso José Ângelo (Wagner
Moura).
É interessante como Trash nunca se pareça um filme feito por
gringos que não sabem nada sobre o país onde ambientam seu longa, mas que na
verdade pareça muito mais um trabalho brasileiro do que estrangeiro. Daldry
apresenta severa dedicação a isso, dado que se mudou para o Rio de Janeiro
antes das filmagens para poder se habituar melhor. Ainda, a estética empregada por
ele e pelo diretor de fotografia Adriano Goldman situam eficazmente o longa no
ambiente das favelas através da imagem granulada, sem deixar de explorar a
beleza natural de alguns ambientes, como a praia, o que tem um valor narrativo
a mais. O bom uso de músicas funk carioca
e a característica trilha sonora original de Antônio Pinto reforçam ainda mais
a atmosfera buscada para o projeto. Ainda, os realizadores não se entregam à
mesquinharia habitual de fazer com que os personagens dialoguem em inglês,
mesmo estando em um país que não fala a língua, um elemento de preocupação que
se torna ainda mais evidente pelo fato da equipe ter contratado, em sua
maioria, um elenco brasileiro, fugindo a essa regra apenas quando se trata de
personagens estrangeiros.
E já que citei o
elenco, é necessário destacar o ótimo desempenho em geral, tirando o fato da
talentosa Rooney Mara se ver presa à uma personagem opaca e desnecessária. Mas
Martin Sheen consegue criar no padre Julliard um sujeito bondoso e genuinamente
preocupado com o bem-estar da comunidade onde trabalha, sendo o seu óbvio
alcoolismo uma fuga melancólica de suas próprias limitações. Wagner Moura,
mesmo com pouco tempo em tela, evidencia toda a desolação que assola José
Ângelo, dando gravidade à sua causa e valor ao seus parcos sorrisos. Selton
Mello brilha com a frieza do vilão Frederico, um sujeito tão corrupto, tão mal,
que se torna quase cômico em suas tentativas fracassadas de adotar um tom de
voz com alguma emoção, já que isso parece algo alienígena ao sujeito, que
carrega apenas calculismo, tédio e gelo nas suas precisas falas.
Mas é no elenco
infantil, formado de crianças vindas de diferentes comunidades cariocas, que o
filme é ainda mais feliz. Gabriel Weinstein faz de Rato uma figura divertida
mas ao mesmo tempo genuinamente dedicada. Eduardo Luis dá um show como Guardo,
criando o personagem mais complexo do filme, um garotinho que sente o peso das
circunstâncias, expressa medo e coragem em iguais medidas, além de um estilo de
malandro que encanta. Características essas que, infelizmente, não se vêem no
unidimensional protagonista, Rafael, cujas motivações se reduzem ao “fazer o
certo”; apesar disso, Rickson Teves tem um bom desempenho como o guri, fazendo
de suas determinações sentimentos palpáveis.
O que mais diferencia Trash, no entanto, se refere à própria
natureza de sua trama, ou mesmo de seu universo. A história de Rafael, Guardo e
Rato é uma de aventuras, quase de fábula, com caça ao tesouro, parceria, situações
demasiado perigosas para crianças e muita perseguição. Mas ao mesmo tempo que
tem esse apelo à um gênero específico, o filme (e imagino que o livro também) consegue
ambientar a aventura à cruel realidade onde vivem seus personagens, e logo
vemos que por trás da caça ao tesouro estilo “Indiana Jones urbano” há
um subtexto maligno envolvendo violência policial, abuso de autoridade, subornos,
prisões lotadas e em condições inumanas, favelas sujas e crianças vivendo no
lixo, além de descarada corrupção política.
Trash,
então, usa a aventura infanto-juvenil, a ficção, para falar da realidade, para
promover discussões, e despertar mais apelos críticos através de uma catarse do
que consegue a galerinha pseudo-intelectual que ama masturbar suas próprias
laringes com discursos de “voto consciente”. Bem que o psicanalista Jaques
Lacan falava que “a fala porta gozo”, mas o que algumas pessoas na internet promovem
é um bacanal dionisíaco. Por mais que seja necessário falar sobre a política,
sobre pensamento crítico na hora de votar, ou tomar qualquer medida que vise a
melhoria do país, é preciso tomar cuidado para que a fala não fique presa a si
mesma. E é justamente isso o que está acontecendo com a irritante explosão de
pseudo-sociólogos nas redes sociais...
Mas estou divagando.
Ainda assim, talvez seja justamente por isso que é tão revigorante ver, mesmo
que na ficção, as crianças sendo o instrumento de mudança social que podem ser,
fazendo o que a enorme maioria dos adultos não fazem: agir. E não é preciso uma
caça ao tesouro para fazer isso. O que Trash
mostra, apesar de possuir inegáveis defeitos enquanto filme (que não valem
tanto os comentários), através do lúdico, é que há muito o que ser feito para
mudar uma realidade cruel além de ficar se coçando e reclamando no Facebook,
Twitter ou outra coisa do tipo.
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