Análise:
Coherence (Coherence / 2014 / EUA) dir. James Ward Byrkit
por
Lucas Wagner
Existe aquela velha
máxima que alguns cinéfilos e cineastas adoram, romanticamente, repetir: câmera
na mão e ideia na cabeça. Ao invés de criar um visual arrojado para o projeto,
o foco dessas criativas produções de baixo orçamento está nas ideias, e o
improviso muitas vezes reina. Essa ficção científica Coherence é um ótimo feito nesse sentido recentemente,
representando ainda um excelente ponta-pé para a carreira do diretor e
roteirista James Ward Byrkit, que já tinha trabalhado no roteiro da inesquecível
animação Rango.
Sem revelar nada que
comprometa as melhores reviravoltas presentes no projeto, a trama poderia ser
resumida da seguinte forma: ocorre um jantar entre velhos amigos na mesma noite
em que um cometa passa bem próximo do planeta Terra, sendo visível no céu noturno.
Durante essa passagem, a energia acaba em todo o bairro, deixando luz apenas em
uma isolada casa a alguns quarteirões de distância. A partir disso, uma série
de perturbadores eventos tem início, em especial quando os personagens percebem
estar lidando com uma situação envolvendo universos paralelos.
Por motivos de redução
de custos de filmagem, o diretor rodou o projeto em sua própria casa, e, aliás,
a própria premissa de ficção científica partiu de necessidades financeiras, já
que o cineasta gostaria de “fazer uma sala de jantar parecer maior do que uma
sala de jantar”. As ideias envolvendo universos paralelos trazidas para o
projeto ampliam em complexidade e drama o parco espaço físico, que diretor e
equipe souberam usar com inteligência.
A começar pela forma
como desenvolvem a relação entre os amigos no início da obra, e como, aos
poucos, vai apresentando informações que introduzem a narrativa em sua temática
sem, no entanto, atropelar o desenvolvimento dos personagens ou soar deveras
óbvio em atender suas necessidades narrativas. Assim, os amigos conversam
tranquilamente sobre diversas coisas (e a fotografia de Nic Sadler acerta nos
tons quentes e aconchegantes, assim como os móveis e objetos de cena transmitem
a mesma sensação), muitas delas envolvendo suas histórias, besteiras, piadas, e
apenas pontualmente tocando em temas importantes para a trama de ficção
científica.
Quando esta definitivamente
começa, a tensão se instala, em especial pela maneira brusca como os amigos são
interrompidos em sua reunião, e essa mesma brusquidão só funciona por já termos
sido preparados por pistas que, de leve, introduziam maior suspense, como os
celulares quebrados ou a falta de internet. Ward Byrkit (o diretor) então se
mostra bem sucedido ao conseguir imprimir uma atmosfera de tensão crescente,
com a narrativa se tornando cada vez mais angustiante quanto mais os
personagens vão se tornando cientes, ou ao menos fazendo suposições, sobre a
situação em que estão implicados. Além disso, a obra ganha ao criar um clima de
paranóia que em muito remete a clássicos como O Enigma de Outro Mundo ou Vampiros
de Almas, quando a confiança dos personagens (e a nossa também) sobre a
natureza e intenções de várias daquelas pessoas começa a ser testada. No
entanto, Coherence ganha ainda mais
complexidade nesse âmbito do que nas outras obras citadas, pois aqui os
possíveis “impostores” (ou “visitantes”) na casa não tem, a priori, intenções malignas, mas são seres humanos tão confusos
quanto seus companheiros (ou adversários).
A trama em si prima
pela inteligência. Coherence é uma
ficção científica mais focada em desenvolver ideias, e assim a obra fascina ao
brincar com conceitos de múltiplas realidades e do famoso experimento “mental”
do gato de Schrödinger. Só é uma pena que algumas vezes esses conceitos não
sejam introduzidos de forma mais orgânica, mas sim envolvendo muletas
narrativas como a protagonista (Emily Baldoni – lindíssima) que já pesquisou o
assunto, ou o personagem de Hugh que, por glória de deus, tem um livro no carro
que fala sobre essas questões, além de ser irmão de um físico teórico. Mas isso
acaba pouco importando por sermos completamente fisgados pela trama, nos
tornando cada vez mais interessados com as reviravoltas e suas implicações
presentes no roteiro, com o filme se tornando um delicioso “mindfuck” que
qualquer espectador vai se perceber regozijando ao, às vezes sem intenção
consciente, decifrar. Além disso, corrobora a inteligência de Ward Byrkit ao
introduzir, ao longo projeção, diversas pistas para eventos futuros,
transformando o projeto num quebra cabeça que o espectador vai montando.
Interessante também
observar o esforço do diretor/roteirista em transformar cada um dos personagens
em indivíduos tridimensionais. No entanto, não é sempre bem sucedido, e se Mike
é um sujeito complexo e fascinante, Lee comove com sua delicada passividade e
Laurie se mostra muito mais proativa do que o esperado, outros personagens são consideravelmente
desinteressantes, como o galã bocó Kevin ou a própria protagonista, Emily,
cujos dilemas amorosos acabam apenas por irritar, apesar de justificar boas
cenas.
Porém, a meu ver, o
mais interessante de Coherence é o
fato de não raro flertar com questões existenciais envolvendo as implicações de
um encontro com universos paralelos. Isso faz o longa aprofundar-se mais do que
o esperado no seu próprio tema, mas também é algo que Ward Byrkit faz de
maneira irregular. Pois existem subtramas como aquela que envolve o temor de
Mike despertado pela existência de um outro “eu”, que acaba retroagindo em seu
próprio comportamento e assim afetando a trama como um todo. Mas também, há
diversas oportunidades tristemente desperdiçadas, e quando Emily cita as
possibilidades de autoconhecimento que tal situação implica (ou poderia
implicar), só pude lamentar que o filme descarte a ideia com a mesma rapidez
que a propôs.
Enriquecido por uma conclusão
eletrizante, Coherence é um
empreendimento nobre e muito eficaz, mais uma prova de que o mais importante em
uma ficção científica (ou em qualquer gênero, diga-se de passagem), são as
ideias e o modo como as trabalha. Então, mesmo que não seja tão fascinante
quanto alguns “primos” como Triângulo do
Medo ou Donnie Darko, é
certamente divertido o suficiente para valer a visita.
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