Análise:
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Hoje Eu Quero Voltar Sozinho / 2014
/ Brasil) dir. Daniel Ribeiro
por
Lucas Wagner
No início desse Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel
Ribeiro, a personagem Giovana (Tess Amorin) lamenta a falta de um “grande
drama” em sua vida. Porém, a ausência desses grandes dramas é justamente o que
enriquece a obra. Não que não existam aqui sentimentos avalassadores, paixões,
mágoas, dores e alegrias, mas o filme compreende esses elementos dentro de
situações prosaicas do cotidiano, algo que o recente Entre Nós, ao insistir em um drama bem mais fora do comum, não
conseguiu. Essa abordagem e esse tipo de olhar ainda permitem que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho tenha uma
visão madura e doce sobre a homossexualidade de seu protagonista.
O roteiro do próprio
Daniel Ribeiro conta a história de Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente
cego que sempre pode contar com a ajudar de Giovana, sua melhor amiga. No
entanto, a amizade que passa a desenvolver com Gabriel (Fabio Audi) começa a
despertar em Leonardo sentimentos românticos que até então não tinham um
destinatário específico.
Todos os personagens da
obra se comportam como pessoas absolutamente normais que enfrentam problemas
muito comuns, o que já desperta a simpatia do espectador. O modo como lidam com
seus sentimentos, tantas vezes de forma destrambelhada ou causando desconforto
a outrem, são perfeitamente naturais e refletem a clara complexidade do
comportamento humano, que não raro age de forma desconexa e perturbadora para
si mesmo. Os dramas vividos pelos adolescentes aqui se referem às mágoas de se
cair numa friendzone, ciúmes,
insegurança de expressar seus próprios sentimentos, chacotas de colegas, etc,
tudo tratado de uma forma que chega a ser “bonitinha”, e quase não dá para
conter um sorriso ao ver um personagem fingir que estava bêbado para evitar uma
conversa que deseja e teme. Além disso, o comportamento dos pais de Leonardo,
fonte de tanta amargura para o garoto, não deixa de fazer sentido, embora fique
evidente a diferença de comportamento do pai e da mãe, mas sempre ficando claro
que o que os dois querem é o bem do filho, mesmo que de forma distinta do que
este mesmo vê como seu bem.
Pois Leonardo já está
cansado de ver sua cegueira como uma justificativa para mantê-lo afastado do
que seria a vida normal de um garoto de sua idade. Com a rebeldia comum de um
adolescente, ele passa a questionar as ações dos pais, ou mesmo de seus amigos
que lhe querem bem. Essa rebeldia não se expressa apenas em ações mais
explosivas, mas muitas vezes em gestos sutis como ao insistir em balançar-se na
cadeira mesmo quando os pais lhe chamaram a atenção para isso várias vezes em
menos de um minuto, ou ainda quando insiste em abrir a fechadura de seu portão,
impedindo Giovana de realizar a tarefa para ele. No entanto, o que é o mais
bacana é que Leonardo não é nenhum ignorante quanto à sua condição, apesar de
às vezes tentar passar a impressão de que é. Assim, em certos momentos é
comovente vê-lo demonstrando insegurança, como ao perguntar, com a voz baixa, se
alguém como ele pode fazer intercâmbio. E também não é por ser rebelde que ele
vai se comportar como um bruto, mas é quase sempre muito amável.
Ser cego não anula o
fato de Leonardo ser um adolescente, e assim ele enfrenta várias inseguranças
típicas de sua idade, muito, por exemplo, em relação à sexualidade. Ele tenta
mascarar seus anseios quanto a isso, além de seus sentimentos quanto a nunca
ter beijado na boca, mas, em momentos mais intimistas, percebemos como essas
questões lhe permeiam os pensamentos, como no momento em que, no banho, pratica
um beijo. O aparecimento de Gabriel e a amizade que criam desenvolve mais esse
desejo de estar com alguém, de viver uma paixão. E esses sentimentos surgem de
forma bastante gradual, sendo esse um grande ponto para o roteiro.
Ponto maior ainda é o
modo como lida com a homossexualidade. Quando escrevi sobre Azul é a Cor Mais Quente comentei sobre
como o filme era sobre a experiência de amar e ser amado, que o sexo do nosso
objeto de desejo não era o mais importante ali. No entanto, o longa citado
focava muito em ser um estudo psicológico de Adéle, uma moça heterossexual quase
adulta que então se descobre homossexual. É mais intrincado do que o que ocorre
com Leonardo, um garoto que não teve experiência com a sexualidade e, como
nasceu cego, a aparência do Outro é o que menos importa. Assim, em nenhum
momento surge algum grande dilema quanto ao fato de Gabriel ser homem. Leonardo
está apaixonado por quem ele é, pelos sentimentos que surgiram nos momentos prosaicos
que passaram juntos, pelos toques delicados em sua mão para guiá-la a um
entendimento que seus olhos não lhe permitem, ou toques ainda em seu rosto ou
corpo, demonstrando um carinho que é reconfortante mas também aterrorizante
para o protagonista. As percepções dos outros quanto ao que está surgindo entre
os dois também nunca é ignorante, e enquanto a avó de Leonardo dá um sorrizinho
ao perceber algo no ar, a mãe dele também não tenta deixar o filho mais
desconfortável ainda quando os pega quase de mão dadas. Os próprios colegas de
sala que insistem em bullinar Leonardo pela sua cegueira e necessidade de ajuda
não são ignorantes nesse ponto, já que a zoeira está concentrada em falar que
alguém é namorado (a) do protagonista, e não se é um garoto ou garota, como a
bela e divertida cena final deixa perfeitamente claro.
Na direção, Daniel
Ribeiro demonstra equilíbrio ao nunca pesar a mão no melodramático, mas também
não evitando momentos mais intimistas. Nesse ponto, a belíssima trilha sonora
incidental é usada com parcimônia para ressaltar a delicadeza de certos
momentos, mas nunca para criá-los. Com poucos momentos visualmente marcantes, o
diretor consegue extrair certa beleza romântica de alguns elementos, como na
dança entre Gabriel e Leonardo, momento este em que a luz do sol de fim de
tarde entra pela janela e os ilumina. Usando uma profundidade de campo quase
sempre reduzida para simular um pouco da dificuldade de Leonardo para perceber
o mundo, Ribeiro ainda revela-se um diretor atento a detalhes específicos da
atuação de seu elenco que muito revelam sobre os sentimentos em jogo por ali.
Para isso, então, seu
elenco faz um ótimo trabalho, e Guilherme Lobo interpreta Leonardo e toda sua
postura altiva mas também insegura com delicadeza o suficiente (embora o ator
por vezes recite suas falas de forma muito mecânica). Fabio Audi faz de Gabriel
um jovem complexo e gentil, cujos sentimentos são para ele mesmo uma fonte de
confusão, como fica claro na comovente cena do chuveiro. Tess Amorin interpreta
Giovana como uma garota adorável que usa a raiva como forma de esconder todas
as inseguranças que carrega. Todo o restante do elenco faz com muito sucesso
que o filme nunca caia no maniqueísmo, e até mesmo personagens que facilmente
cairiam no desgosto do espectador, como a “piriguete” Karina ou os bullinadores
de Leonardo, tem momentos que despertam nossa compaixão.
Eficaz também no bom
humor, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é
um filme adorável e bastante honesto, apostando na delicadeza dos seus
personagens e seus sentimentos para conquistar o espectador, acertando no
processo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário