Análise:
Até o Fim (All is Lost / 2013 / EUA) dir. JC Chandor
por
Lucas Wagner
O mar exerce um efeito
fascinante sobre o ser humano ao demonstrar simultaneamente uma beleza de tirar
o fôlego e uma selvageria que ignora qualquer ato de bondade de uma vida, já
que o mar não segue as regras dos Homens, mas da Natureza, tão bela e furiosa
como sempre foi. Não é a toa que o mar tenha influenciado significantemente
tantos poetas, pintores, romancistas e cineastas. Ernest Hemingway, Jack London
e Joseph Conrad já criaram narrativas profundas que usavam o mar como metáfora
para a Existência, e o cineasta Chris Eyre usou-o de forma discreta para filmar
a recuperação de um homem depois de uma tragédia no belo Hide Away.
Em Até o Fim, novo filme escrito e dirigido por JC Chandor, a trama de
um homem velho tentando sobreviver à fúria do oceano em que navega só é simples
em teoria, já que carrega em si uma profundidade emocional que o aproxima de obras
como Gravidade ou O Velho e o Mar (sim, o livro), quando
usa o meio externo para falar sobre o meio interno. Grande parte dessa força
emocional fica a cargo da maravilhosa atuação de Robert Redford, num dos
melhores desempenhos de uma carreira já tão fascinante.
Pois, apesar de
profundo, Até o Fim não conta com
arroubos emocionais que forçam o espectador a chorar. Pelo contrário, já que
durante boa parte da narrativa, sem praticamente nenhuma fala, o roteiro de
Chandor parece dedicar-se a um cuidadoso estudo comportamental do protagonista
sem nome ou identidade. Se sentimos que o conhecemos profundamente é a partir
da atenção cuidadosa do diretor e do ator aos detalhes das ações realizadas
pelo homem.
Ao ser surpreendido
pelo container à deriva no início da
projeção, o homem não entra em desespero nem começa a xingar, nem mesmo faz
cara feia. Apenas encontra maneiras (comuns ou improvisadas) para consertar o
estrago, e a calma com que Chandor filma os dois dias em que o protagonista
passa investindo nessa atividade é essencial para que compreendamos bastante
sobre a personalidade resiliente e serena dele. É curioso, também, como ele é
uma figura absolutamente respeitável, digna e um exemplo de pessoa, e se isso é
um viés pessoal meu, vocês me perdoem. Mas ele sempre parece lutar
pacificamente, nunca desistindo e nem reclamando, o que é uma virtude que vem
com anos de trabalho duro e muito sofrimento. Observem, por exemplo, quando
parece aceitar que seu rádio pifou de vez. O que ele faz? Senta-se num sofá, pega
seus óculos e começa a ler um livro sobre navegação a partir de estrelas. Como
não admirar? Ou ainda, quando percebe a tempestade se aproximando, ele começa a
guardar seus pertences e armazenar água, e depois faz a barba, talvez por saber
que poderá ficar muito tempo sem poder fazer de novo.
E é por ser tão sereno
e resiliente que o momento em que finalmente entra em desespero e se entrega a
fadiga, à raiva e à melancolia (nunca de forma exagerada, no entanto) se torna
tão trágico e atinja tanto o espectador. Pois, diferente do que vemos em muitos
filmes, Até o Fim tem a grande
virtude de permitir que nós sintamos a fadiga do personagem, o tanto que ele
lutou e torcer por ele, não por conhecê-lo profundamente, mas por estarmos
presenciando seu sofrimento de uma posição insuportavelmente confortável. E nem
o conhecemos tanto assim, mas recebemos dicas que apenas insinuam um oceano de
dores e frustrações, algo que aproxima o filme de outro maravilhoso exemplo de
minimalismo, o lindo Las Acacias.
Observem a aliança do
personagem, ou mesmo o sugestivo nome de seu barco (Virginia Jean). Além disso,
o filme abre com a narração em off de
uma carta repleta de remorso, culpa e desculpas. O que será que aconteceu com
ele? Na verdade, não importa. A falta de identidade que lhe é conferida é
talvez uma forma de respeito dos realizadores que o torna ainda mais
intrigante. Diferente do que ocorreu no citado Hide Away, aqui não foi cometido o erro de justificar o sofrimento
do personagem. O por quê de sua possível procura por solidão no meio no mar não
é assunto nosso para saber. Só podemos supor maiores detalhes a partir de
pequenos gestos de Redford, como ao ignorar (aparentemente com resquícios de
raiva) uma carta que encontra dentro de uma caixa. Além disso, é visível que o
barco contém alguma significância emocional para o personagem, e isso fica
evidente em sua relutância abandoná-lo, criando desculpas para voltar a bordo
ou pelo melancólico último olhar que lança a ele.
Aliás, sinto que falei
muito mas pouco de Redford. O caso é que, desde sua escalação (para aproximar o
espectador de um personagem do qual nem teríamos como nos identificar, à
primeira vista) até alguns dos microdetalhes por ele usados, são sinais de
genialidade. Observem sua primeira fala no filme, quando vai tentar falar no
rádio: ele engasga e a voz sai com dificuldade, numa ilustração do
comportamento de ficar em silêncio e sozinho durante muito tempo. Ele confere
uma dimensão humana essencial para o filme, e suas linhas de expressão e suas
mãos calejadas também são histórias dentro de seu personagem. Histórias que
nunca ficaremos sabendo, pois o que importa não é o que o levou ao isolamento,
mas o fato de estar isolado.
A solidão é a maior
constante em Até o Fim, seja numa
condição auto-imposta ou imposta pela situação em que o homem se encontra.
Chandor ressalta esse sentimento em planos abertos em que vemos Redford isolado
em meio à imensidão do oceano, ou ainda pela linda e dolorosa trilha sonora de
Alexander Ebert, essencial para evocar um aperto no peito e um estado de
tristeza.
Mas o filme não é
apenas sobre tragédia, e sim principalmente sobre a luta primordial entre Homem
e Natureza. Não é gratuita a comparação que fiz com O Velho e o Mar, ainda mais porque o próprio Chandor a ressalta de
maneira bastante direta quando um tubarão “rouba” a pesca do protagonista, cena
esta que ecoa passagens literais do livro. Tanto no romance de Hemingway como
no filme de Chandor, acompanhamos sofridos homens envelhecidos em combate
direto com a Natureza, usando todo o seu reservatório de forças (físicas e
psicológicas) para manter-se de pé e digno. E por mais que a Natureza seja bela
e grandiosa demais para um ser tão diminuto e insignificante como o Homem (como
o diretor reforça nas lindas filmagens submarinas envolvendo peixes e diversos
outros seres aquáticos, completamente ignorantes quanto ao sofrimento de seu
colega de planeta alguns metros acima), este último ainda merece louvores pela
capacidade de resistência que consegue demonstrar, mesmo que muitas vezes seja
vencido numa derrota vergonhosa, como Hemingway mostrou.
Eficaz ainda no
realismo e inventividade das improvisações do protagonista (como o modo de
arrumar água potável) e tocante em seus momentos mais intimistas, Até o Fim é um filme de sobrevivência
que diz muito em diversas camadas. A fragilidade e a tenacidade do ser humano
se misturam num perfeito exemplo dessa malfadada espécie, onde todos os
caminhos traçados por suas profundas rugas levam a oceanos indomados que se
chocam com a brutalidade da Natureza, para a qual nada tão pequeno como um
homem fica no caminho de sua força. Mas que vai ter uma luta bonita, isso vai.
Injusta, mas bela.
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