Análise:
Ela (Her / 2013 / EUA) dir. Spike Jonze
por Lucas Wagner
Ela se parece com um roteiro de Charlie Kaufman mas sem
ser do mesmo. O que não é surpresa, já que o diretor/roteirista Spike Jonze
iniciou sua carreira como cineasta dirigindo dois roteiros de Kaufman (Quero
Ser John Malkovich e Adaptação), e mais importante,
parece ter incorporado o que há de melhor em seu mentor, trabalhando temas
similares (como o caos dos sentimentos) através de uma trama inventiva e
peculiar (o romance entre um homem e um sistema operacional) com um
protagonista doce e solitário. E Jonze faz um soberbo trabalho ao esmiuçar
diversas outras reflexões, criando, no processo, o que é uma das mais belas
histórias de amor contadas nos últimos tempos.
Ela me pegou pela mão e me guiou através de reflexões
profundamente pessoais e ainda sobre a tão bela e singular natureza dos
sentimentos humanos, tão complexos e delicados, que tem o atrevimento de
depositar enorme parcela de sua força em outro ser, sobrecarregando-o com o
peso da responsabilidade do que não é mais do que uma ideia que criamos. Se em certo momento
da obra uma personagem diz que “O passado são histórias que contamos para nós
mesmos”, o mesmo seria verdade se dissesse que o Outro é um personagem que
criamos para nós mesmos, e por isso podemos falhar se não tivermos a delicadeza
de aceitar que esse Outro é um universo extremamente dinâmico e singular e que
não deve ser preso por nossas expectativas.
Se ousássemos a covardia de tentar explicar a “razão”
dos sentimentos de Theodore (Joaquin Phoenix) por Samantha, o sistema
operacional (com voz de Scarlett Johansson), talvez encontrássemos que ela lhe
preenche um vazio justamente por ter acesso à diversos dados pessoais dele,
permitindo assim uma aprendizagem sobre ele que o conforta em sua solidão,
aumentada no seu conturbado divórcio. Samantha é uma forma de mulher dos
sonhos, pois compreende e conforta Theodore. Não sendo uma mulher de carne e
osso, pode-se afirmar que esse é um relacionamento “real”?
A resposta: por que não? Theodore pode ter alguns
motivos racionais/psicológicos para ter se apaixonado por Samantha, e o
fascínio que vai desenvolvendo por ela vai muito além do que o contato físico
proporcionaria. Theodore se apaixona pela ideia que cria da
mulher, pela ideia que aquele ser desprovido de corpo representa, e eu fico me
perguntando se não é isso que realmente desperta as mais honestas e poderosas
paixões na realidade. Afinal, o que é dizer que alguém ou alguma coisa é real
ou não? Toda essa tal de “realidade” é um tanto quanto superestimada, pois no
fundo o que importa é como nós nos sentimos, como pensamos, como cada variável
nova que surge em nosso mutável ambiente vai modificar quem somos. Vivemos num
diminuto espaço de tempo e o que existe é nossa realidade, e o que
podemos fazer dela. Novamente evoco a fala do filme, “O passado são histórias
que contamos para nós mesmos”, e reflito como tudo acaba sendo história, como
nós somos constituídos de histórias e momentos que reformulamos em nossas
memórias, tão passíveis de falhas e vieses que fica difícil se basear em fatos
quando o que está em jogo são nossas próprias vidas. Nietzsche disse que “nós
desejamos o desejo, não o desejado”, e esse desejo que desenvolvemos usando um
desejado como fonte é mais uma história, ou, como disse no segundo parágrafo,
um personagem que criamos, com base em nossos próprios anseios, temores e
perspectivas.
Viajando mais um pouco (adoro quando posso fazer isso
com um filme), somos criaturas capazes de sentir profundamente por diversos
fatores, e quem pode dizer que tal sentimento é mais ou menos válido do que
outro? Se eu escutar uma música qualquer que fala sobre guerras e
políticos, e com ela me lembrar de algo completamente diferente, como de meu
pai ou minha mãe? Meu sentimento é inferior? Ao ler, por exemplo, Cem
Anos de Solidão, de Gabriel García Marquéz, me senti profundamente ligado
aos personagens, a ponto de chorar com a morte de alguns deles. Eles não
existem e nem nunca existiram, mas eu os conhecia, ou melhor, conhecia a ideia deles,
talvez a mera ideia que eu formava deles, e isso era suficiente. O próprio
Spike Jonze chega a transmitir diretamente essas reflexões na questão das
cartas que o protagonista escreve para terceiros em nome de terceiros. Pode ser
que não tenham sido escritas por quem se espera que as escreva, mas isso não
deixa que o sentimento que elas despertem em quem lê seja menos real.
Um relacionamento é pautado em ideias, e essas ideias
são fragmentos da realidade que moldamos em nós mesmos. Assim, Samantha é muito
mais do que a ideia que Theodore forma dela, e isso só é possível pelo
tratamento que Jonze dá a ela, além de, é claro, o espetacular trabalho de voz
de Scarlett Johansson (notem suas nuances, como quando pela entonação engasgada
da constrangida resposta que dá à Theodore quando este fala que ela não sabe
como é sentir), conseguindo transformar o sistema operacional em uma personagem
extremamente complexa. Se deliciando ao descobrir o fascínio que sente pelo
mundo e pelos humanos, Samantha é uma figura fascinante que demonstra ter
capacidade de desenvolver sentimentos profundos, e se vê deliciada ao
perceber-se capaz disso. E assim, o seu desenvolvimento por si só já
proporciona reflexões maravilhosas, bem no esquema do livro O Fim da Infância, de Arthur C.
Clarke, que exploram as ótimas oportunidades criativas da trama de ficção
científica. Mas o mais da importante nesse desenvolvimento da personagem em
relação à discussão que explorei até agora nesse texto é que: Samantha muda,
seu “verdadeiro eu” passa a gritar tão alto que esmaga as ideias de Theodore, e
ela se sente compelida a dar voz à essa vontade. Apesar de tão complexa,
Samantha sempre foi e sempre será um sistema operacional de computador, e quem
é o culpado por sentir-se como sente, e sofrer por isso, é o próprio Theodore,
exatamente da mesma maneira como nos vemos decepcionados com pessoas que a
princípio nos fascinam e depois nos decepcionam. É o choque de nossas ideias
com a realidade.
E se todas essas reflexões funcionam tão bem é
porque Ela ainda é um filme de romance maravilhoso. Os
diálogos que Jonze cria entre Theodore e Samantha são repletos de percepções
fascinantes e ainda dotados de uma honestidade tocante em como demonstram seus
sentimentos. Assim também, Jonze se mostra sábio na adoção da reduzida
profundidade de campo, já que assim isola Theodore do resto do mundo,
mantendo-o muito mais em intimidade com Samantha. A direção com toques malickianas,
os planos suaves com flares que dão uma sensação de nostalgia
e romantismo palpáveis são essenciais também para que possamos ser guiados com
delicadeza pela história, trabalho também da belíssima trilha sonora original.
Delicadeza essa que Jonze também demonstra em flashbacks que
mantém o som do “presente” enquanto vemos imagens do passado, conseguindo assim
fazer com que nos sintamos exatamente como o personagem naquele momento.
Também é curioso que o diretor filme diversos indivíduos solitários cada vez mais apegados aos seus aparelhos eletrônicos. Estamos vivendo em uma sociedade em que as pessoas estão criando vínculos profundos com esses aparelhos, e ai chegamos em mais uma bela reflexão: e se esses aparelhos desenvolvessem sentimentos e percepções? Como lidaríamos se esses aparelhos criassem independência? Como toda boa ficção científica, Ela é genial ao explorar possibilidades hipotéticas, que ainda se expandem em conteúdos tão complexos como sobre como seria o sentimento de amor de um sistema operacional.
Mas no fundo mesmo Ela é um longa sobre relacionamentos, e podemos cavar reflexões ainda mais relevantes na observação de como o roteiro de Jonze é sábio ao perceber que os frutos que um relacionamento deixará nunca serão apenas ruins. Muito pelo contrário, pois cada interação que criamos com alguém vai fazer com que aprendamos mais sobre nós mesmos, com que alcancemos alguns degraus a mais na infinita escada que é o amadurecimento humano.
Com atuações maravilhosas não só de Johansson, mas também de Joaquin Phoenix e Amy Adams, Ela é uma obra prima que trata com maestria de situações tão mutáveis como a natureza dos sentimentos, a manipulação da “mente” humana sobre si mesma e a realidade, fazendo dessa não o que a palavra pode significar de fato em um dicionário, mas um conceito volátil e complexo que se adapta a nossas necessidades mais imediatas.
Um adendo (01/11/2014):
É uma experiência interessante revisitar
o filme de Spike Jonze e reler, tanto tempo depois, o que escrevi sobre a obra.
Lembro-me do turbilhão de emoções que o longa me provocou e da dificuldade que
tive em analisá-lo racionalmente, recorrendo mais à linguagem poética do que
qualquer outra, simplesmente porque se adequava mais ao modo como, bem, fui
tocado pelo filme.
Revisitá-lo me fez ver que, se hoje
fosse escrever o texto, seu conteúdo seria o mesmo, já que todos os elementos que tanto admiro continuam lá, mas a forma seria
completamente diferente. Rever um filme, ainda mais um que nos toca tão
intensamente, nunca é uma experiência idêntica à vez anterior que o assistimos.
Dado que boa parte do que sentimos ao apreciar uma obra de arte parte de nós
mesmos, de nossas vidas, e como constantemente mudamos (evoluímos?) é bem
provável que sejamos pessoas diferentes.
Assim, 10 meses depois que assisti
"Ela" no cinema, agora o vi em Blu-Ray, e consigo fazer uma análise
perfeitamente racional do filme. Cínica até. Um cinismo que, no entanto, não
impede que toda a poesia da obra seja perdida, mas apenas posso perceber melhor
como as nuances da construção do roteiro de Jonze são cuidadosas ao propor
diversas ideias, muitas das quais acabam se referindo ao comportamento humano
frente a sentimentos como o de amor/paixão, e como a existência não é outra
coisa se não um ato inerentemente solitário, e nas nossas parcas (e dolorosas)
tentativas de acabar com essa solidão só fazem reduzir, sem esgotar, a fonte de
carência que sentimos, e que ousamos depositar, em forma de expectativa, nos
ombros de outras pessoas que são criaturas singulares por si próprias, elas
mesmas um infinito Universo de possibilidades, que não devem se prender a nós
ou o que esperamos deles. Ainda assim, o que vemos é como nossas expectativas
são algemas nos braços daqueles que dizemos que amamos. E nós amamos, e talvez
por isso mesmo seja tão insuportável, intragável até, ver nosso objeto de amor
evoluindo, ciente de que é um Universo separado de nós. Se ver livre. Afinal,
além de solitários, somos egoístas.
Por breves momentos, no entanto,
conseguimos sair de nosso mundo e perceber que o que é tão insuportavelmente
belo no ato de se relacionar é a constante dialética de construção/destruição
que sofremos ao nos chocar com outras vidas. Isso não é apenas lindo, mas
inerentemente doloroso. E talvez daí venha sua beleza.
Enfim, "Ela" é meu filme
favorito desse ano até agora (lançado no Brasil) e acho difícil ver algum outro
tomar seu lugar. E mesmo conseguindo analisá-lo de modo bem mais racional,
ainda me delicio ao perceber como, assim como as cartas que Theodore escreve de
terceiros para terceiros, Jonze discorre longamente sobre a minha vida, me
fazendo reanalisá-la e perceber coisas que, sem a Arte, dificilmente
perceberia. Creio que não estou sozinho nesse pensamento.
Parabens pelo texto! Muito bom!
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