Análise:
Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle – Chapitre 1 & 2 /
2013 / França) dir. Abdelatiffe Kechiche
por
Lucas Wagner
Azul
é a Cor Mais Quente é uma história de amor sincera, tocante
e com uma intimidade que consegue aproximar a obra dos romances da vida real,
ao explorar o descobrimento da sexualidade de sua protagonista e o prazer da
descoberta de um amor forte e poderoso, assim como o desenrolar deste. O fato
de que esse romance ocorre entre duas mulheres não é o centro da questão.
Baseado na HQ de Julie
Maroh, o longa se concentra na protagonista Adèle (Adèle Exarchopoulos)
enquanto estudante de Ensino Médio. Começando a perceber um certo interesse
homossexual, Adèle conhece Emma (Léa Seydoux), mulher mais velha por quem se
apaixona e inicia um relacionamento amoroso.
Optando pelo
naturalismo/realismo, o diretor Abdellatife Kechiche utiliza predominantemente
sons diegéticos (com origem no ambiente) e abole uma trilha sonora original, o
que, juntamente com o uso da uma constante steadicam,
garante uma narrativa mais crua e calcada no mundo real. Mais interessante é o
uso predominante que o cineasta faz de planos fechados, primeiros planos,
focados nos rostos dos atores/atrizes, algo raro que aqui serve para o
propósito de nos aproximar daqueles indivíduos, mas em especial, nos aproximar
de Adèle, já que, no fim das contas, o longa é um estudo dessa personagem, algo
que também fica claro pela insistência do diretor ao mostrar diversos momentos
do cotidiano da protagonista, desde seus dias na escola (como professora e como
aluna) à até mesmo um banho.
Estabelecendo a cor
azul como representação dos desejos da protagonista (e não é por acaso que Emma
tenha cabelo azul), Kechiche é hábil ao espalhar, estrategicamente, essa cor
nos cenários ou nos figurinos. Assim, no início do filme, quando mais feliz,
Adèle aparece vestindo uma roupa azul, e ainda o travesseiro de sua cama possui
a mesma cor, representação da matéria dos sonhos que, como dizia Freud, funcionam
como realização de desejos reprimidos. As cenas nas boates gays (masculina e
feminina) são obras de arte à parte pelo uso que o cineasta faz da cor azul:
quando vai com seu amigo em uma boate gay para homens, a coloração do ambiente
é toda azul, como se Adèle tivesse entrado em um ambiente mais próximo da
concretização de seus desejos, que, no entanto, ainda estão dispersos e não
encontraram um objeto para se estabelecer (por isso a cor está espalhada em
todo o ambiente); ao ir na boate gay feminina, o que notamos é uma coloração
clara e aconchegante, mas sem o azul ambiental, que agora está no cabelo de
Emma, quem Adèle está encontrando pela segunda vez. Ou seja, seus desejos
encontraram um “objeto” sobre o qual se organizar: Emma.
A inteligência de
Kechiche na utilização do azul vai mais fundo no decorrer da projeção. Em certo
ponto, Emma muda a coloração de seu cabelo para loiro, perdendo o azul, cor
essa que aparece mais constantemente na indumentária de Adèle e no ambiente
(não por acaso, a primeira cena em que Emma aparece loira tem início com Adèle
deitada, nua, em um divã azul claro). Os desejos sexuais/amorosos para os quais
a protagonista buscou um receptáculo para desabrochar agora podem ser
completamente dela, que se torna uma mulher adulta cada vez mais confiante e
dona de si, quando apoiada por Emma.
Nada disso teria muito
sentido se o roteiro do próprio Kechiche junto com Ghalia Lacroix não fizesse
tão bom trabalho no desenvolvimento de Adèle, por sua vez interpretada com
perfeição absoluta por Adèle Exarchopoulos (que sorriso lindo essa garota tem,
caramba!). Tímida, culta e esquiva, Adèle é uma garota enfrentando a construção
de uma identidade própria, o que, é claro, muito se refere à sexualidade. Insatisfeita
no relacionamento com seu namorado (com quem tentou, honestamente, se envolver
por completo), a moça vai se mostrando cada vez mais confusa e atraída por
mulheres, algo tão potente que um simples beijo com uma amiga serviu de estopim
absoluto para explorar mais potentemente esse seu lado. E se conseguimos
compreender tão bem essa personagem e suas nuances, muitos dos créditos vão
para Exarchopoulos, numa interpretação minimalista que, no entanto, expressa
uma melancolia e um senso de desnorteamento quebrado apenas quando abre um
sorriso sincero. A atriz ainda busca detalhes soberbos como ao usar seu cabelo bagunçado
como um mecanismo de defesa (observem o que ela faz quando seu futuro namorado
a vê no ônibus). Não surpreende que Kechiche use tantos primeiros planos,
captando cada micro detalhe da atuação da moça.
E se Exarchopoulos está
tão bem, Léa Seydoux investe numa estratégia de atuação diferente mas não menos
eficaz na composição de Emma. Trabalhando-a como uma mulher forte e decidida,
Seydoux consegue explorar com maestria sua sensualidade e sua determinação,
assim como os momentos em que se sente mais vulnerável, criando uma personagem
tridimensional e madura que, ao invés de se mostrar ignorante quanto aos
temores iniciais de Adèle em afirmar seu relacionamento para seus pais, se
mostra compreensiva e dá o espaço que a parceira necessita no momento (uma das
melhores cenas do filme, por sinal).
E se tudo isso já faz
de Azul é a Cor Mais Quente uma
grande obra, a delicadeza com que Kechiche vai construindo o filme faz dele
quase uma obra prima. É fascinante a sensibilidade que o diretor demonstra ao
evocar sentimentos na tela e criar correlatos destes em discussões nas aulas de
literatura que Adèle tem na escola, como no modo que Emma e Adèle trocam seu
primeiro olhar (saído de uma discussão de um trecho de determinado livro) ou a
discussão sobre “o natural ser perverso e vice versa”, lembrando que, segundo
Freud, “perverso” é aquilo que se diferencia do comum. Também, mesmo em meio à
uma narrativa crua, detalhes românticos podem ser vistos, como no caso da luz do sol atrás das duas mulheres nos seus primeiros encontros no parque.
Encontros esses que se revelam uma das maiores sacadas do filme, já que vai construindo
com calma a aproximação de Adèle e Emma, que trocam ideias sobre filosofia,
literatura e coisas cotidianas antes de realmente se beijarem.
Assim, as cenas de sexo
se tornam vitais para o longa, principalmente para estabelecer a diferença
gritante entre a relação de Adèle com seu namorado e a posterior e genuinamente
prazerosa/carinhosa com Emma. Sem contar que, devido à aproximação das duas que
fomos acompanhando, com a palpável tensão sexual de uma simples troca de olhares
ou de uma indireta (Emma falando de ostras), o sexo não vem como “putaria”, mas
como uma demonstração de afeto genuíno e de uma livre exploração de prazeres íntimos
que só podem ser encontrados no Outro.
É provável que muita
gente que adora se autoproclamar intelectual vá ficar exaltando esse filme como
uma obra sobre a luta contra a homofobia, diferenciando esse de outros romances
simplesmente por ser homossexual. Poderia ser entre duas mulheres, dois homens
ou um homem e uma mulher. Como disse no primeiro parágrafo, isso não importa
aqui. Azul é a Cor Mais Quente é um
filme sobre amar, sobre se entregar à uma outra pessoa e permitir que esse
outro alguém tenha enorme responsabilidade por algo tão frágil e valioso como nossos
sentimentos.
Terminar o longa com a
mesma música que ouvimos quando Adèle e Emma se viram pela primeira vez é,
assim, uma forma de Kechiche fechar um ciclo romântico na via de Adèle, que,
como qualquer ser humano, vai seguir outras vias e se apaixonar e se destruir
de novo e de novo. Se isso será com um homem ou uma mulher, não tem a mínima
importância.
simplesmente perfeito !
ResponderExcluirAmei a crítica, muito muito ;)