sábado, 28 de dezembro de 2013


Análise:

Azul é a Cor Mais Quente (La Vie d’Adèle – Chapitre 1 & 2 / 2013 / França) dir. Abdelatiffe Kechiche

por Lucas Wagner

Azul é a Cor Mais Quente é uma história de amor sincera, tocante e com uma intimidade que consegue aproximar a obra dos romances da vida real, ao explorar o descobrimento da sexualidade de sua protagonista e o prazer da descoberta de um amor forte e poderoso, assim como o desenrolar deste. O fato de que esse romance ocorre entre duas mulheres não é o centro da questão.

Baseado na HQ de Julie Maroh, o longa se concentra na protagonista Adèle (Adèle Exarchopoulos) enquanto estudante de Ensino Médio. Começando a perceber um certo interesse homossexual, Adèle conhece Emma (Léa Seydoux), mulher mais velha por quem se apaixona e inicia um relacionamento amoroso.

Optando pelo naturalismo/realismo, o diretor Abdellatife Kechiche utiliza predominantemente sons diegéticos (com origem no ambiente) e abole uma trilha sonora original, o que, juntamente com o uso da uma constante steadicam, garante uma narrativa mais crua e calcada no mundo real. Mais interessante é o uso predominante que o cineasta faz de planos fechados, primeiros planos, focados nos rostos dos atores/atrizes, algo raro que aqui serve para o propósito de nos aproximar daqueles indivíduos, mas em especial, nos aproximar de Adèle, já que, no fim das contas, o longa é um estudo dessa personagem, algo que também fica claro pela insistência do diretor ao mostrar diversos momentos do cotidiano da protagonista, desde seus dias na escola (como professora e como aluna) à até mesmo um banho.

Estabelecendo a cor azul como representação dos desejos da protagonista (e não é por acaso que Emma tenha cabelo azul), Kechiche é hábil ao espalhar, estrategicamente, essa cor nos cenários ou nos figurinos. Assim, no início do filme, quando mais feliz, Adèle aparece vestindo uma roupa azul, e ainda o travesseiro de sua cama possui a mesma cor, representação da matéria dos sonhos que, como dizia Freud, funcionam como realização de desejos reprimidos. As cenas nas boates gays (masculina e feminina) são obras de arte à parte pelo uso que o cineasta faz da cor azul: quando vai com seu amigo em uma boate gay para homens, a coloração do ambiente é toda azul, como se Adèle tivesse entrado em um ambiente mais próximo da concretização de seus desejos, que, no entanto, ainda estão dispersos e não encontraram um objeto para se estabelecer (por isso a cor está espalhada em todo o ambiente); ao ir na boate gay feminina, o que notamos é uma coloração clara e aconchegante, mas sem o azul ambiental, que agora está no cabelo de Emma, quem Adèle está encontrando pela segunda vez. Ou seja, seus desejos encontraram um “objeto” sobre o qual se organizar: Emma.

A inteligência de Kechiche na utilização do azul vai mais fundo no decorrer da projeção. Em certo ponto, Emma muda a coloração de seu cabelo para loiro, perdendo o azul, cor essa que aparece mais constantemente na indumentária de Adèle e no ambiente (não por acaso, a primeira cena em que Emma aparece loira tem início com Adèle deitada, nua, em um divã azul claro). Os desejos sexuais/amorosos para os quais a protagonista buscou um receptáculo para desabrochar agora podem ser completamente dela, que se torna uma mulher adulta cada vez mais confiante e dona de si, quando apoiada por Emma.

Nada disso teria muito sentido se o roteiro do próprio Kechiche junto com Ghalia Lacroix não fizesse tão bom trabalho no desenvolvimento de Adèle, por sua vez interpretada com perfeição absoluta por Adèle Exarchopoulos (que sorriso lindo essa garota tem, caramba!). Tímida, culta e esquiva, Adèle é uma garota enfrentando a construção de uma identidade própria, o que, é claro, muito se refere à sexualidade. Insatisfeita no relacionamento com seu namorado (com quem tentou, honestamente, se envolver por completo), a moça vai se mostrando cada vez mais confusa e atraída por mulheres, algo tão potente que um simples beijo com uma amiga serviu de estopim absoluto para explorar mais potentemente esse seu lado. E se conseguimos compreender tão bem essa personagem e suas nuances, muitos dos créditos vão para Exarchopoulos, numa interpretação minimalista que, no entanto, expressa uma melancolia e um senso de desnorteamento quebrado apenas quando abre um sorriso sincero. A atriz ainda busca detalhes soberbos como ao usar seu cabelo bagunçado como um mecanismo de defesa (observem o que ela faz quando seu futuro namorado a vê no ônibus). Não surpreende que Kechiche use tantos primeiros planos, captando cada micro detalhe da atuação da moça.

E se Exarchopoulos está tão bem, Léa Seydoux investe numa estratégia de atuação diferente mas não menos eficaz na composição de Emma. Trabalhando-a como uma mulher forte e decidida, Seydoux consegue explorar com maestria sua sensualidade e sua determinação, assim como os momentos em que se sente mais vulnerável, criando uma personagem tridimensional e madura que, ao invés de se mostrar ignorante quanto aos temores iniciais de Adèle em afirmar seu relacionamento para seus pais, se mostra compreensiva e dá o espaço que a parceira necessita no momento (uma das melhores cenas do filme, por sinal).

E se tudo isso já faz de Azul é a Cor Mais Quente uma grande obra, a delicadeza com que Kechiche vai construindo o filme faz dele quase uma obra prima. É fascinante a sensibilidade que o diretor demonstra ao evocar sentimentos na tela e criar correlatos destes em discussões nas aulas de literatura que Adèle tem na escola, como no modo que Emma e Adèle trocam seu primeiro olhar (saído de uma discussão de um trecho de determinado livro) ou a discussão sobre “o natural ser perverso e vice versa”, lembrando que, segundo Freud, “perverso” é aquilo que se diferencia do comum. Também, mesmo em meio à uma narrativa crua, detalhes românticos podem ser vistos, como no caso da luz do sol atrás das duas mulheres nos seus primeiros encontros no parque. Encontros esses que se revelam uma das maiores sacadas do filme, já que vai construindo com calma a aproximação de Adèle e Emma, que trocam ideias sobre filosofia, literatura e coisas cotidianas antes de realmente se beijarem.

Assim, as cenas de sexo se tornam vitais para o longa, principalmente para estabelecer a diferença gritante entre a relação de Adèle com seu namorado e a posterior e genuinamente prazerosa/carinhosa com Emma. Sem contar que, devido à aproximação das duas que fomos acompanhando, com a palpável tensão sexual de uma simples troca de olhares ou de uma indireta (Emma falando de ostras), o sexo não vem como “putaria”, mas como uma demonstração de afeto genuíno e de uma livre exploração de prazeres íntimos que só podem ser encontrados no Outro.

É provável que muita gente que adora se autoproclamar intelectual vá ficar exaltando esse filme como uma obra sobre a luta contra a homofobia, diferenciando esse de outros romances simplesmente por ser homossexual. Poderia ser entre duas mulheres, dois homens ou um homem e uma mulher. Como disse no primeiro parágrafo, isso não importa aqui. Azul é a Cor Mais Quente é um filme sobre amar, sobre se entregar à uma outra pessoa e permitir que esse outro alguém tenha enorme responsabilidade por algo tão frágil e valioso como nossos sentimentos.

Terminar o longa com a mesma música que ouvimos quando Adèle e Emma se viram pela primeira vez é, assim, uma forma de Kechiche fechar um ciclo romântico na via de Adèle, que, como qualquer ser humano, vai seguir outras vias e se apaixonar e se destruir de novo e de novo. Se isso será com um homem ou uma mulher, não tem a mínima importância.


Um comentário: