sábado, 12 de outubro de 2013



Crítica Gravidade (Gravity / 2013 / EUA) dir. Alfonso Cuarón

por Lucas Wagner

  Uma das coisas que me fascina em obras como Amnésia ou Réquiem Para Um Sonho é a habilidade com que seus respectivos diretores (Christopher Nolan e Darren Aronofsky) conseguiram nos colocar em um estado que no mínimo conseguia refletir o que os personagens estavam passando ao longo da projeção. Entrando nesse grupo com força total, Alfonso Cuarón cria uma obra brilhante em Gravidade, que se utiliza da própria Ciência e das mais rebuscadas técnicas do Cinema para criar uma jornada intensa e asfixiante, além de intimista em seu cerne.

  O roteiro do próprio Cuarón, escrito junto com o filho, Jonás Cuarón, conta com uma base simples, onde uma estação espacial é atingida por destroços de um satélite, tendo resultados catastróficos e lançando a astronauta iniciante Ryan Stone (Sandra Bullock) e o veterano Michael Kowalski (George Clooney) à deriva no espaço.

  A melhor palavra para definir Gravidade no âmbito técnico é: soberbo. Cuarón retorna sua parceria com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (um dos melhores em atividade) e aproveita da temática “gravidade zero” para criar tomadas sublimes e planos extremamente longos que transformam o filme em uma das experiências mais marcantes e curiosas produzidas pelo Cinema. Simulando a falta de gravidade do espaço, Cuarón e Lubezki permitem que a câmera passeie quase que à deriva pelo ambiente, viajando pelo campo e englobando diversas ações enquanto conseguem desenvolver com perfeição o “clima” de cada sequência. À guisa de exemplo, a tomada inicial (que deve ter cerca de 10 minutos) é impecável ao, sem conter algum corte aparente, estabelecer a relação entre os personagens e a ambientação, além de filmar a explosão da estação em dimensão ainda mais angustiante por termos acompanhado a construção do suspense de forma contínua. Aliás, o filme já abre de forma brilhante ao apresentar legendas descrevendo perigos do espaço sideral enquanto a trilha sonora vai adquirindo mais intensidade e, quando chega no clímax, um corte nos leva para a órbita da Terra, num silêncio absoluto, angustiante e propagador de uma sensação de ameaça iminente.

  Não só no seu inicio, mas durante toda a projeção, Gravidade é recheado de planos longos que desenvolvem a ação continuamente, o que não só é um deleite para os olhos, mas serve para criar angústia desesperadora no ambiente. E se no primeiro parágrafo comentei sobre a capacidade de Cuarón em nos colocar no estado emocional de seus personagens (em especial Stone), ele literalmente chega a adotar, diversas vezes, o ponto de vista subjetivo da protagonista, o que serve inclusive para nos passar um pouco da sensação de desconforto dela ao não conseguir controlar o próprio corpo ou ainda na dificuldade de, em um estado de baixa consciência, ter que realizar manobras complexas com seu corpo para atingir um objetivo. Inclusive, em certo momento, Cuarón tem a ousadia de passar de um ponto de vista objetivo para um subjetivo, em uma única tomada, permitindo uma visão tridimensional da situação.

  Desse modo, a utilização do 3D por Cuarón se revela como provavelmente a melhor de até então. Consciente (como poucos cineastas) de que, para o 3D, deve-se adotar uma profundidade de campo altíssima (ou seja, sem embaçar o fundo do campo), Cuarón consegue o efeito de aumentar a tensão por permitir que a imensidão do espaço aberto sirva como lembrete incessante da ameaça maior de ficar à deriva. Além disso, o diretor é hábil ao aumentar o suspense em planos abertos como o que Stone é vista em primeiro plano (perto da câmera) arrumando algo em uma nave, enquanto os destroços do satélite destruído são vistos no fundo do campo, se aproximando perigosamente. Mas Cuarón é inteligentíssimo ao usar uma profundidade de campo reduzida apenas em momentos que possuem significação narrativa, como quando, em certo momento, o reflexo do rosto de Stone em uma janela fica embaçado enquanto o espaço externo fica evidente, e logo depois o diretor muda o foco, deixando evidente o rosto de Stone e embaça o fundo, já que é nesse momento que a protagonista deve tomar uma decisão vital.

  Adotando um raro respeito ao quesito Ciência contido no gênero de ficção científica, Gravidade acerta ao, por exemplo, respeitar a Física ao filmar as explosões no espaço sideral sem seus respectivos efeitos sonoros, já que o som apenas se propaga em meios materiais, e não no vácuo, conferindo um efeito ainda mais vigoroso e elegante às sequências, principalmente por nos aproximar mais dos personagens ao nos permitir ouvir apenas suas respirações ofegantes ou o que eles estão conversando via rádio. O desconforto e dificuldade trazidos pela inércia à qual os astronautas estão expostos fica também evidenciado na mise en scéne que constantemente mostra manobras corporais que não atingem seus objetivos, ou quando corpos colidem uns com os outros ou com objetos, atrasando o avanço de suas ações. Esses conceitos científicos, como fica claro, conferem ainda mais força à parte cinematográfica, como quando Química e a Biologia são evocadas pela falta de oxigênio de uma personagem, quando a reserva desse elemento em seu traje espacial vai findando e nos vemos gritando para ela (em pensamento) para respirar devagar e “queimar menos oxigênio”; ou ainda quando esta passa a respirar apenas gás carbônico e vai perdendo a consciência, desesperando o espectador pela velocidade que este sabe que a tarefa dela deve ser realizada; não poderia deixar de mencionar também que o mais importante insight de Stone ocorre em parte devido à falta de O2 em um momento específico*.

  Se tudo isso já faria de Gravidade um filme excepcional, este consegue ares de obra prima por adotar uma sensibilidade intimista que, justamente com o respeito científico, o aproxima ainda mais do seu levemente similar Contato, de Robert Zemeckis. Assim como nesse longa citado, o roteiro dos Cuarón consegue usar o espaço externo para desenvolver o espaço interno de sua protagonista. Apresentada como criatura extremamente frágil logo no início do longa, Ryan Stone é uma mulher sensível tanto emocionalmente como fisicamente, já que, como é novata no espaço, seu corpo ainda está em processo de adaptação. Constantemente desestabilizada, Stone vai revelando profundas camadas emocionais que abraçam uma sensibilidade gritante devido à uma história em que o brutal acaso lhe tirou o sentido da vida. Assim, a solidão do espaço e a sua luta pela sobrevivência funcionam como condições ideais para sua transformação interna, completando um arco dramático que revela tanto sobre a fragilidade como sobre a força profunda que um ser humano tem quando encontra um motivo para lutar.

  Nesse ponto, eu gostaria de poder beijar os pés de Cuarón e Lubezki quando criam planos intimistas e sublimes que conseguem ser evocativos sem ser exagerados. Stone, quando entra em uma nave, se despe e finalmente pode respirar, é vista flutuando suavemente em posição fetal, sendo engolfada pelo ambiente da nave contraposto com o hostil espaço aberto vislumbrado através de uma janela; é como se Stone, tendo sido exposta à condições e um ambiente extremamente aversivos, buscasse consolo na calma do retorno ao mais seguro dos ambientes: o útero. Assim, também presenciamos um contexto de renascimento, onde a personagem volta ao útero para poder renascer mais forte e lutar pela sua vida. Tal tomada ainda evoca a fragilidade da personagem, e entra em choque com uma no terceiro ato que é filmada em contra plongée, ou seja, de baixo para cima, dando-lhe um aspecto de força e superioridade. Nesse sentido também a trilha sonora composta por Steven Price acerta ao investir em temas mais sensíveis, com vocais femininos delicados e violinos, quando Stone está mais isolada e encurralada, mas, no fim, abraça temas fortes, com vocais poderosos que transmitem noção de força e imponência, mas sem perder os vocais femininos, que conferem uma perfeita sensação de transcendência.

  A sequência que se passa dentro da cápsula onde Stone escuta sinais de rádio também merece destaque por Lubezki colori-la com a luz verde decrépita vinda dos botões luminosos, conferindo sensação de mortalidade para a cena (algo que é brilhantemente alterado de acordo com a narrativa, em certo momento). Tal sequência ainda é importante por ser onde Cuarón (pai e filho) conseguem atingir uma profundidade imensa com sua protagonista, utilizando-se de um meio dinâmico para que esta possa atingir camadas profundas de sua personalidade, num momento onde a solidão e desespero do espaço, o sentimento de desolação e inferioridade, atravessam a tela e atingem o espectador no estômago, conferindo força para a catarse da personagem.

  Catarse essa que não seria possível sem o personagem de Matthew ou a conotação religiosa do mesmo. Sujeito carismático e seguro de si, Matt demonstra firmeza ao assumir o controle da situação quando esta se torna caótica, ao mesmo tempo em que demonstra habilidade ao conversar calmamente com a personagem de Stone para que esta se acalme e possa respirar direito. Mais importante de tudo é a qualidade bucólica do personagem, o que lhe confere ares de um mestre sábio, como por exemplo na sua capacidade de se apaixonar pelo planeta Terra todas as vezes que o vê do espaço, sabendo enxergar sua beleza mesmo numa situação tão desesperadora como a que se encontra. Para isso, George Clooney (sempre talentoso) consegue o equilíbrio ideal entre galã brincalhão, líder experiente e bucolismo.

  Assim o personagem adquire grande importância ao ser um vetor para Stone, e a essa relevância adquire um quê até místico quando ele passa a guia-la apenas com o som da voz. Aliás, Gravidade é ainda curioso ao trazer, de forma bastante sutil, certa conotação teológica, como no exemplo que acabei de citar, ou ainda outros: quando Stone pede por uma oração; quando uma imagem de Buda pode ser vista no painel da nave oriental; quando uma imagem de um santo pode ser vista num painel de outra nave. O fato do filme trazer uma imagem cristã e outra budista só aumenta sua qualidade, por abraçar a teologia e não a religião, coisas totalmente distintas.

  Mas Sandra Bullock não fica de fora. Apesar de ter trabalhado em alguns projetos sofríveis ao longo da carreira, Bullock aqui demonstra a força necessária para interpretar Stone. Adotando uma cadência de voz que evoca fragilidade, Bullock é competente ao aos poucos ir evidenciando a transformação de Stone, do puro desespero até a determinação absoluta, permitindo que o espectador compartilhe de seus estados emocionais.

  Se babei para o filme, também em certos momentos tive que torcer o nariz. Algumas falas são sofríveis (“No hablo chino!” e “Dia claro com previsão de destroços de satélite russo” ainda me doem no fundo da alma) e também, mesmo que a trilha sonora contenha acertos inegáveis, seria bacana se Cuarón tivesse aberto mão dela em mais cenas, o que aumentaria a tensão. Esses probleminhas não tiram Gravidade do status de obra-prima, tanto por tudo que já comentei, ou ainda quando lembro da inteligência de seus realizadores por deixar a Terra muitas vezes em evidência (como lembrete do objetivo dos personagens, e ressaltando a beleza do planeta, como ao mostrar uma aurora boreau), pela delicadeza de mostrar Matt ouvindo sempre uma música country, o que serve de lembrança nostálgica do lar dos personagens, ou ainda pelo fato de Cuarón ter contratado Ed Harris para fazer a voz do coordenador técnico em Houston, já que o ator interpretou o mesmo papel em Apollo 13, de Ron Howard.

   Obra essencialmente experimental, Gravidade evoca a Física, a Química, a Biologia, a Teologia e um profundo conhecimento sobre Cinema para clamar a solidão e o desamparo humanos na sua pequenez no espaço, onde Stone pode encontrar as ferramentas necessárias para reencontrar a si mesma e poder sobreviver. 

   Nesse caminho, um clássico moderno foi criado.

*SPOILER: Me refiro, é claro, à alucinação de Stone onde ela vê Matt.

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