Crítica Gravidade (Gravity / 2013 / EUA) dir. Alfonso Cuarón
por
Lucas Wagner
Uma das coisas que me fascina em obras como Amnésia ou Réquiem Para Um Sonho é a habilidade com que seus respectivos diretores
(Christopher Nolan e Darren Aronofsky) conseguiram nos colocar em um estado que
no mínimo conseguia refletir o que os personagens estavam passando ao longo da
projeção. Entrando nesse grupo com força total, Alfonso Cuarón cria uma obra
brilhante em Gravidade, que se
utiliza da própria Ciência e das mais rebuscadas técnicas do Cinema para criar
uma jornada intensa e asfixiante, além de intimista em seu cerne.
O roteiro do próprio Cuarón, escrito junto
com o filho, Jonás Cuarón, conta com uma base simples, onde uma estação
espacial é atingida por destroços de um satélite, tendo resultados
catastróficos e lançando a astronauta iniciante Ryan Stone (Sandra Bullock) e o
veterano Michael Kowalski (George Clooney) à deriva no espaço.
A melhor palavra para definir Gravidade no âmbito técnico é: soberbo.
Cuarón retorna sua parceria com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki (um
dos melhores em atividade) e aproveita da temática “gravidade zero” para criar
tomadas sublimes e planos extremamente longos que transformam o filme em uma
das experiências mais marcantes e curiosas produzidas pelo Cinema. Simulando a
falta de gravidade do espaço, Cuarón e Lubezki permitem que a câmera passeie
quase que à deriva pelo ambiente, viajando pelo campo e englobando diversas
ações enquanto conseguem desenvolver com perfeição o “clima” de cada sequência.
À guisa de exemplo, a tomada inicial (que deve ter cerca de 10 minutos) é
impecável ao, sem conter algum corte aparente, estabelecer a relação entre os
personagens e a ambientação, além de filmar a explosão da estação em dimensão
ainda mais angustiante por termos acompanhado a construção do suspense de forma
contínua. Aliás, o filme já abre de forma brilhante ao apresentar legendas
descrevendo perigos do espaço sideral enquanto a trilha sonora vai adquirindo
mais intensidade e, quando chega no clímax, um corte nos leva para a órbita da
Terra, num silêncio absoluto, angustiante e propagador de uma sensação de
ameaça iminente.
Não só no seu inicio, mas durante toda a
projeção, Gravidade é recheado de
planos longos que desenvolvem a ação continuamente, o que não só é um deleite
para os olhos, mas serve para criar angústia desesperadora no ambiente. E se no
primeiro parágrafo comentei sobre a capacidade de Cuarón em nos colocar no
estado emocional de seus personagens (em especial Stone), ele literalmente
chega a adotar, diversas vezes, o ponto de vista subjetivo da protagonista, o
que serve inclusive para nos passar um pouco da sensação de desconforto dela ao
não conseguir controlar o próprio corpo ou ainda na dificuldade de, em um
estado de baixa consciência, ter que realizar manobras complexas com seu corpo
para atingir um objetivo. Inclusive, em certo momento, Cuarón tem a ousadia de
passar de um ponto de vista objetivo para um subjetivo, em uma única tomada,
permitindo uma visão tridimensional da situação.
Desse modo, a utilização do 3D por Cuarón se
revela como provavelmente a melhor de até então. Consciente (como poucos
cineastas) de que, para o 3D, deve-se adotar uma profundidade de campo
altíssima (ou seja, sem embaçar o fundo do campo), Cuarón consegue o efeito de
aumentar a tensão por permitir que a imensidão do espaço aberto sirva como
lembrete incessante da ameaça maior de ficar à deriva. Além disso, o diretor é
hábil ao aumentar o suspense em planos abertos como o que Stone é vista em
primeiro plano (perto da câmera) arrumando algo em uma nave, enquanto os
destroços do satélite destruído são vistos no fundo do campo, se aproximando
perigosamente. Mas Cuarón é inteligentíssimo ao usar uma profundidade de campo
reduzida apenas em momentos que possuem significação narrativa, como quando, em
certo momento, o reflexo do rosto de Stone em uma janela fica embaçado enquanto
o espaço externo fica evidente, e logo depois o diretor muda o foco, deixando
evidente o rosto de Stone e embaça o fundo, já que é nesse momento que a
protagonista deve tomar uma decisão vital.
Adotando um raro respeito ao quesito Ciência
contido no gênero de ficção científica, Gravidade
acerta ao, por exemplo, respeitar a Física ao filmar as explosões no espaço
sideral sem seus respectivos efeitos sonoros, já que o som apenas se propaga em
meios materiais, e não no vácuo, conferindo um efeito ainda mais vigoroso e
elegante às sequências, principalmente por nos aproximar mais dos personagens
ao nos permitir ouvir apenas suas respirações ofegantes ou o que eles estão
conversando via rádio. O desconforto e dificuldade trazidos pela inércia à qual
os astronautas estão expostos fica também evidenciado na mise en scéne que constantemente mostra manobras corporais que não
atingem seus objetivos, ou quando corpos colidem uns com os outros ou com
objetos, atrasando o avanço de suas ações. Esses conceitos científicos, como
fica claro, conferem ainda mais força à parte cinematográfica, como quando
Química e a Biologia são evocadas pela falta de oxigênio de uma personagem,
quando a reserva desse elemento em seu traje espacial vai findando e nos vemos
gritando para ela (em pensamento) para respirar devagar e “queimar menos
oxigênio”; ou ainda quando esta passa a respirar apenas gás carbônico e vai
perdendo a consciência, desesperando o espectador pela velocidade que este sabe
que a tarefa dela deve ser realizada; não poderia deixar de mencionar também que o mais importante insight de Stone ocorre em parte devido à falta de O2 em um momento específico*.
Se tudo isso já faria de Gravidade um filme excepcional, este consegue ares de obra prima
por adotar uma sensibilidade intimista que, justamente com o respeito
científico, o aproxima ainda mais do seu levemente similar Contato, de Robert Zemeckis. Assim como nesse longa citado, o
roteiro dos Cuarón consegue usar o espaço externo para desenvolver o espaço
interno de sua protagonista. Apresentada como criatura extremamente frágil logo
no início do longa, Ryan Stone é uma mulher sensível tanto emocionalmente como
fisicamente, já que, como é novata no espaço, seu corpo ainda está em processo
de adaptação. Constantemente desestabilizada, Stone vai revelando profundas
camadas emocionais que abraçam uma sensibilidade gritante devido à uma história
em que o brutal acaso lhe tirou o sentido da vida. Assim, a solidão do espaço e
a sua luta pela sobrevivência funcionam como condições ideais para sua
transformação interna, completando um arco dramático que revela tanto sobre a
fragilidade como sobre a força profunda que um ser humano tem quando encontra
um motivo para lutar.
Nesse ponto, eu gostaria de poder beijar os
pés de Cuarón e Lubezki quando criam planos intimistas e sublimes que conseguem
ser evocativos sem ser exagerados. Stone, quando entra em uma nave, se despe e
finalmente pode respirar, é vista flutuando suavemente em posição fetal, sendo
engolfada pelo ambiente da nave contraposto com o hostil espaço aberto
vislumbrado através de uma janela; é como se Stone, tendo sido exposta à
condições e um ambiente extremamente aversivos, buscasse consolo na calma do
retorno ao mais seguro dos ambientes: o útero. Assim, também presenciamos um contexto de renascimento, onde a personagem volta ao útero para poder renascer mais forte e lutar pela sua vida. Tal tomada ainda evoca a fragilidade
da personagem, e entra em choque com uma no terceiro ato que é filmada em
contra plongée, ou seja, de baixo
para cima, dando-lhe um aspecto de força e superioridade. Nesse sentido também
a trilha sonora composta por Steven Price acerta ao investir em temas mais
sensíveis, com vocais femininos delicados e violinos, quando Stone está mais isolada e
encurralada, mas, no fim, abraça temas fortes, com vocais poderosos que
transmitem noção de força e imponência, mas sem perder os vocais femininos, que conferem uma perfeita sensação de transcendência.
A sequência
que se passa dentro da cápsula onde Stone escuta sinais de rádio também merece
destaque por Lubezki colori-la com a luz verde decrépita vinda dos botões
luminosos, conferindo sensação de mortalidade para a cena (algo que é
brilhantemente alterado de acordo com a narrativa, em certo momento). Tal
sequência ainda é importante por ser onde Cuarón (pai e filho) conseguem
atingir uma profundidade imensa com sua protagonista, utilizando-se de um meio
dinâmico para que esta possa atingir camadas profundas de sua personalidade,
num momento onde a solidão e desespero do espaço, o sentimento de desolação e
inferioridade, atravessam a tela e atingem o espectador no estômago, conferindo
força para a catarse da personagem.
Catarse essa que não seria possível sem o
personagem de Matthew ou a conotação religiosa do mesmo. Sujeito carismático e
seguro de si, Matt demonstra firmeza ao assumir o controle da situação quando
esta se torna caótica, ao mesmo tempo em que demonstra habilidade ao conversar
calmamente com a personagem de Stone para que esta se acalme e possa respirar
direito. Mais importante de tudo é a qualidade bucólica do personagem, o que
lhe confere ares de um mestre sábio, como por exemplo na sua capacidade de se
apaixonar pelo planeta Terra todas as vezes que o vê do espaço, sabendo
enxergar sua beleza mesmo numa situação tão desesperadora como a que se
encontra. Para isso, George Clooney (sempre talentoso) consegue o equilíbrio
ideal entre galã brincalhão, líder experiente e bucolismo.
Assim o personagem adquire grande importância
ao ser um vetor para Stone, e a essa relevância adquire um quê até místico
quando ele passa a guia-la apenas com o som da voz. Aliás, Gravidade é ainda curioso ao trazer, de forma bastante sutil,
certa conotação teológica, como no exemplo que acabei de citar, ou ainda
outros: quando Stone pede por uma oração; quando uma imagem de Buda pode ser
vista no painel da nave oriental; quando uma imagem de um santo pode ser vista
num painel de outra nave. O fato do filme trazer uma imagem cristã e outra
budista só aumenta sua qualidade, por abraçar a teologia e não a religião,
coisas totalmente distintas.
Mas Sandra Bullock não fica de fora. Apesar
de ter trabalhado em alguns projetos sofríveis ao longo da carreira, Bullock
aqui demonstra a força necessária para interpretar Stone. Adotando uma cadência
de voz que evoca fragilidade, Bullock é competente ao aos poucos ir
evidenciando a transformação de Stone, do puro desespero até a determinação
absoluta, permitindo que o espectador compartilhe de seus estados emocionais.
Se babei para o filme, também em certos
momentos tive que torcer o nariz. Algumas falas são sofríveis (“No hablo
chino!” e “Dia claro com previsão de destroços de satélite russo” ainda me doem
no fundo da alma) e também, mesmo que a trilha sonora contenha acertos
inegáveis, seria bacana se Cuarón tivesse aberto mão dela em mais cenas, o que
aumentaria a tensão. Esses probleminhas não tiram Gravidade do status de obra-prima, tanto por tudo que já comentei,
ou ainda quando lembro da inteligência de seus realizadores por deixar a Terra
muitas vezes em evidência (como lembrete do objetivo dos personagens, e
ressaltando a beleza do planeta, como ao mostrar uma aurora boreau), pela
delicadeza de mostrar Matt ouvindo sempre uma música country, o que serve de lembrança nostálgica do lar dos personagens,
ou ainda pelo fato de Cuarón ter contratado Ed Harris para fazer a voz do
coordenador técnico em Houston, já que o ator interpretou o mesmo papel em Apollo 13, de Ron Howard.
Obra
essencialmente experimental, Gravidade evoca
a Física, a Química, a Biologia, a Teologia e um profundo conhecimento sobre Cinema para
clamar a solidão e o desamparo humanos na sua pequenez no espaço, onde Stone
pode encontrar as ferramentas necessárias para reencontrar a si mesma e poder
sobreviver.
Nesse caminho, um clássico moderno foi criado.
*SPOILER: Me refiro, é claro, à alucinação de Stone onde ela vê Matt.
Nesse caminho, um clássico moderno foi criado.
*SPOILER: Me refiro, é claro, à alucinação de Stone onde ela vê Matt.
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