Crítica
filme “Upside Down” (Upside Down / 2013 / França, Canadá) dir. Juan Solanas
por Lucas Wagner
Algumas histórias batidas usadas pelo Cinema, Literatura e Dramaturgia podem ficar interessantes de novo dependendo da “roupagem” que estiverem usando. Se “Romeu e Julieta” já é uma história chatinha e clichê, de amor impossível e idealista, o diretor e roteirista Juan Solanas conseguiu transformar essa fórmula sheakesperiana em algo interessante e criativo, cheio de ideias que nos fazem querer sempre pensar mais sobre o funcionamento do fascinante universo que criou. E, é claro, há todo o romance apaixonado e utópico digno dos trágicos amantes de Sheakespeare.
Em uma realidade alternativa, desde o início
do Universo, dois planetas que orbitam o mesmo sol, só que possuem gravidades
opostas, fundem uma parte de si com o outro, criando uma espécie de “mundo
duplo”, com a parte de cima e a parte de baixo. Há leis físicas que são
particulares de cada um desses mundos e definem, em parte, o modo de vida e
organização das civilizações opostas. Uma dessas leis físicas mostra que cada
um desses mundos possui uma gravidade própria, que “puxa” o indivíduo de determinado
mundo para o seu mundo de origem. Assim, se alguém “de cima” estiver “em baixo”,
sem obstáculo algum (como uma pedra, por exemplo) vai “cair para cima”. E, se
forçar a barra para algum objeto ou pessoa pertencente à um mundo para ficar no
mundo oposto, esse vai, em menos de uma hora, entrar em combustão.
Enfim, Adam (Jim Sturgess) pertence ao “mundo
de baixo” e, quando moleque, conhece Eden (Kirsten Dunst), habitante do “mundo
de cima”. Os dois se apaixonam loucamente e vivem um romance “diferente” até a
sua adolescência, encontrando modos pouco confortáveis de se manterem perto um
do outro, num ponto de onde as atmosferas dos dois mundos se encontram. Um
evento trágico acontece que os separam ainda mais, levando Adam, 10 anos
depois, a perseguir uma possibilidade de reencontrar Eden, algo que fará mesmo
que desafiando as próprias leis físicas daquele universo bizarro. O maior
problema, no entanto, é que Edith perdeu a memória no evento que os separou.
O mais fascinante sobre o filme é o modo como
Solanas vai desenvolvendo a própria lógica daquela mitologia, desde os créditos
iniciais, que surgem dinâmicos com uma animação que pode ser bem enquadrada sob
o conceito de psicodelia (e o recurso preguiçoso da narração em off, mesmo não sendo 100% necessária no
longa, é essencial em algumas partes, como na introdução). Não satisfeito em
apenas criar conceitos interessantes, Solanas aprofunda-se na exploração desses
conceitos, como na criação do ponto onde as atmosferas dos mundos se encontram
e Adam vai catar frutos que caem do mundo de cima; o fato de, nesses frutos,
conter uma substância que, aparentemente, encontra um equilíbrio entre as
gravidades, conseguindo, mesmo ser do mundo de cima, se manter no de baixo; a
invenção de Adam do creme “anti-envelhecimento”, muito criativo e divertido; e
até mesmo em detalhes pequenos mas cheios de inventividade, como a bebida “invertida”
que os personagens bebem no “Café dos Mundos”, os objetos metálicos do mundo de
cima que o pessoal do mundo de baixo usa para fins de aquecimento, ou quando Adam
urina no mundo oposto ao seu e o líquido “cai para cima”.
Como se não bastasse, Solanas demonstra ser
um bom conhecedor do que enriquece, de fato, uma ficção científica e discute
conceitos sociais que se aplicam àquele Universo e retroagem na nossa própria
realidade. O caso é que o diretor/roteirista entra nas discussões marxistas de
classes sociais e coloca o mundo de cima como pertencente às classes mais altas
e o de baixo como às classes mais baixas. A segregação é tão grande que os
habitantes dos mundos opostos não podem possuir qualquer contato mais duradouro
sem correr risco de vida, já que é proibido por lei a própria relação de
amizade/amor entre eles (o que, é claro, influência ainda mais na impossibilidade
do amor entre Eden e Adam). As pessoas do mundo de baixo não podem possuir
qualquer possibilidade de crescimento social, já que, até mesmo àqueles
possíveis gênios (como Adam com suas invenções), só é permitido o mínimo
possível de contato com o mundo de cima, que tomam dos “de baixo” o que
precisam, lhes dando pouco crédito depois, já que eles são “ralé”, de
periferia. A coisa toda se torna ainda mais complexa quando percebemos que no
mundo de cima ainda existe a classe média e sua indeterminação de identidade
(algo que discuti extensivamente na minha crítica do maravilhoso O Som ao Redor), sendo considerada quase
próxima do mundo de baixo, algo que fica evidenciado no longo escritório onde
coexistem trabalhadores de cima e de baixo, como se fosse o fundo do poço para
os de cima, e o ápice da vida social para os de baixo. Podemos até mesmo
transcender tudo o que Solanas propõe e imaginarmos a contradição existente no
fato de os “de cima” se chamarem assim, já que, objetivamente, os que estão em
baixo estão em cima na perspectiva desses. Então, na verdade, o oposto sempre
está acima! Então, é na verdade uma ordem social imposta pelas classes mais
altas que forçam uma visão inferiorizada para as denominadas classes mais
baixas, exatamente como acontece na
realidade, já que toda a noção de classes sociais é socialmente construída nas
contradições inerentes ao processo da História! Genial!!! E fica simplesmente
impossível não apreciar a inteligência de Solanas ao colocar o mundo de cima
pegando formas de energia mais barata do mundo de baixo para vender para esses
mesmos com um preço absurdo. Lembra alguma coisa?
Visualmente também Upside Down é simplesmente de tirar o fôlego! Com uma fotografia
belíssima e uma direção de arte impecável, Solanas consegue balancear uma atmosfera
de ficção científica e fábula para seu filme, ressaltando a linha tênue entre a
ciência e fantasia do longa. A direção de arte é eficientíssima em ressaltar a
grandiosidade tecnológica do mundo de cima com a decadência do de baixo, se
tornando ainda mais fascinante na construção dos ambientes da classe média do
mundo de cima ou, principalmente, na criação do “Café dos Mundos”, bar que tem
o teto como o chão do mundo oposto; o fascinante sobre esse bar é que, mesmo
interessante como conceito em si mesmo, funciona como uma forma de desenvolver
mais a personagem de Eden, já que transmite, em seu ambiente antiquado,
decadente mas ainda dono de uma rústica beleza, toda uma nostalgia melancólica
de um tempo e uma amor que agora não passam de uma névoa em sua cabeça. É bem
verdade, no entanto, que Solanas exagera no uso de flares (reflexos luminosos), chegando a incomodar um pouco, embora,
aqui e ali, o uso seja adequado para um tom maior de romantismo. No quesito da
trilha sonora o diretor ainda erra pelo uso constante, embora esse equívoco
possa ser parcialmente perdoado já que a trilha composta por Benoít Charest é
belíssima, funcionando com tons fabulescos/românticos e outros mais intensos e
modernos.
Como filme de romance, Upside Down não é lá um Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças ou Antes
do Amanhecer/Antes do Pôr-do-Sol,
mas funciona bem, com toda a dose de utopia que devemos aceitar de um amor à
primeira vista que dura a vida toda. Para isso, as atuações de Sturgess e Dunst
funcionam para nos aproximar daqueles indivíduos e nos importarmos com eles,
torcendo pelo sucesso de seu relacionamento. Jim Sturgess é um ator que, assim
como John C. Reilly e Ron Perlman, consegue deixar interessante qualquer
personagem que interpreta, já que é dedicado e cheio de energia, conseguindo
conferir intensidade e tridimensionalidade à qualquer papel, tornando palpáveis
os dilemas de seus personagens (lembro bem da intensidade brutal de sua atuação
em A Marca da Vingança, cujo papel
que interpretava seria muito infantil sem a forte atuação dele), e assim, transforma
Adam num indivíduo romântico e inocente, e, o que é mais importante, consegue
nos fazer importar com seu amor sem limites por Eden. Já Kirsten Dunst
transforma Eden numa figura cuja própria tragicidade melancólica da falta de
memória, da nostalgia constante e sem forma, junto com a beleza física, já a
deixam apaixonante, nos deixando com pena e carinho pela personagem,
compartilhando da dor que um mero evento, por menos importante que pareça, pode
provocar nela. Infelizmente, o roteiro de Solanas não é eficiente no
desenvolvimento de Eden como é no de Adam, e lhe dá muito menos atenção, o que
impede um pouco que fiquemos mais ligados à personagem como deveríamos.
Além dos problemas que discuti acima, Upside Down possui alguns mais graves
que o impede de se tornar uma obra-prima. Muito disso se refere,
principalmente, às formas tolas que Solanas encontra de resolver muitos
conflitos que cria, como a resolução da falta de memória de Eden ou de toda a
história da impossibilidade física do casal ficar junto. Aliás, chega a ser
decepcionante que o diretor, tão ambicioso, force um final muito artificial,
forçando a barra para acabar tudo feliz.
Apesar disso, a questão é que Juan Solanas
conseguiu criar um longa admirável e bonito, criativo e inteligente, que ainda
consegue nos fazer importar com o casal protagonista, transformando, assim, Upside Down em uma experiência
emocionalmente e intelectualmente estimulante.
Nota: 8.8 / 10.0
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