sábado, 16 de fevereiro de 2013



Crítica filme “O Mestre” (The Master / 2012 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson

por Lucas Wagner

  À primeira vista, O Mestre é uma história que funciona como uma alusão à criação da hilária religião Cientologia, e de fato, a base da trama é basicamente isso mesmo. No entanto, o filme se revela mais como um estudo psicológico fascinante e extremamente complexo, capaz de deixar muitos estudos de caso que podemos ver em Psicologia comendo poeira. Dito isso, Paul Thomas Anderson (de agora em diante nessa crítica, apenas PTA) consegue entregar mais uma obra-prima invejável, que não fica nem um pouco atrás de nenhum de seus magistrais filmes anteriores.

  Como de praxe escrito pelo próprio PTA, o longa conta a história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um homem obviamente perturbado e com graves problemas psicológicos, que acaba no caminho do “mestre” Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que desenvolve uma espécie de religião alternativa (obviamente a Cientologia, mas aqui apelidada de “A Causa”) e encontra em Freddie uma grande oportunidade de testar os valores de sua teoria. A partir disso, desenvolve-se uma amizade estranha e complicada, para ambos os lados.

  Em uma das primeiras cenas, vemos Freddie com alguns “amigos” em uma praia. Esses amigos fazem uma escultura de areia na forma de uma mulher, e Freddie imediatamente monta em cima dela e finge estar fazendo sexo, primeiro causando risos em seus amigos, risos esses que pouco depois se transforma em vergonha alheia, já que a brincadeira está durando muito tempo. Logo após, este se masturba na praia de frente para o mar, sem se importar com quem está por perto. Logo de cara então já o vemos como um sujeito que sofre de graves problemas psicológicos, que vão sendo trabalhados por PTA de forma cuidadosa ao longo do filme. Grande parte dos problemas do protagonista parecem ser de natureza sexual, já que Freddie parece ver alguma forma de pornografia em tudo, como fica claro na cena em que, em um estado meio que de sonolência, enxerga todas as mulheres que estão na casa só que sem roupas. No entanto, no que se refere ao seu comportamento com mulheres, ele parece por demais ambíguo, parecendo fugir dessas sem nunca saber descrever o por que. Em um encontro com uma linda mulher, ele adormece; ao invés de voltar para a possivelmente mulher de seus sonhos, prefere deixá-la para lá, esperando por ele, enquanto este não dá nem notícias. Aparentemente, são os homens que lhe chamam mais a atenção. Observem como ele parece prestar muito mais atenção no genro de Lancaster do que em uma mulher que lhe esfrega a mão na perna. Além disso, a cena em que lhe é aplicado um teste de Rorschach é usada por PTA já para estabelecer alguma relação com a homossexualidade, já que, se primeiramente vê uma vagina, na figura seguinte vê um pênis entrando numa vagina, e na seguinte, apenas um pênis.

  Só que estamos falando dos anos 50, uma época mais moralista onde a homossexualidade ainda não era vista com a visão mais liberal que vemos hoje. Freddie então parece descarregar esses “impulsos” atrás de uma forma subliminar, psicopatológica de agressão e violência, o que também encontra eco na relação conturbada que obviamente teve com o pai e, principalmente, a mãe, algo que lhe serviu de profunda experiência negativa, já que ele sempre evita falar da mãe. Só que, percebendo que esse comportamento não lhe trouxe nada senão infortúnios sociais, Freddie procura sufocar esses impulsos de forma tão extremada que surte até mesmo efeitos visíveis em seu corpo, apenas aumentando o seu modo peculiar de ser, parecendo sempre inconsciente de seus bizarros comportamentos (como os citados no início do parágrafo anterior). Freddie parece mesmo uma bomba sempre pronta para explodir, que, talvez para se acalmar um pouco, fica constantemente em movimento, seja em sua vida (na mudança de empregos e ambientes) ou seja até mesmo literalmente (quando fica andando sem parar). E essa estrangulação psicológica que aplicou a si mesmo aparentemente apenas lhe promoveu uma cisão de sua personalidade, criando na verdade um pequeno monstro que, mesmo aparentemente gentil e inofensivo, não perde uma oportunidade de encher alguém de porrada, muitas vezes guiando essa agressividade sobre si mesmo, como quando se dá vários tapas dolorosos ao errar uma tarefa, ou quando, de modo mais sutil, se faz ouvir detalhes sobre a nova vida de uma antiga paixão.

  E aqui entra a sublime atuação de Joaquin Phoenix, o verdadeiro merecedor do Oscar de Melhor Ator (muito mais do que Daniel Day Lewis por Lincoln, que inevitavelmente vai ganhar). Interpretando mais um sujeito com traços infantilizados (como fez em Amantes, Um Sonho Sem Limites, Gladiador, Brigada 49, etc), Phoenix consegue a sua melhor performance até hoje ao se entregar aos mais excruciantes detalhes de Freddie. Com o corpo sempre encurvado e a boca semicerrada, Phoenix ilustra a força absurda que Freddie usa, mesmo que talvez inconscientemente, para se manter sob controle, como se usasse a introspecção forçada (algo evidenciado também pela dicção sempre atrapalhada pela mandíbula apertada) como uma forma de proteger a si mesmo e os outros de sua própria personalidade. Phoenix ainda consegue nos fazer sentir certa pena de Freddie, sempre evidenciando sua fragilidade e instabilidade.

  Mas não é só em Freddie que O Mestre tem sua força. Aliás, o longa fica incompleto sem dois outros lados: Lancaster e Mary. Aparentemente interessado em expandir seus conhecimentos e o alcance de sua religião, Lancaster é na verdade um homem solitário que vive sob os comandos indiretos de sua esposa, Mary (Amy Adams), que o controla de forma sutil, como quando o masturba no banheiro, ao mesmo tempo em que lhe dita “ordens” no ouvido, ou numa das últimas cenas, quando esta parece dizer tudo que “precisa” ser dito, enquanto ele fica calado. Lancaster também tem grande disposição à violência e assim, o seu interesse “científico” em Freddie pode ser mais uma indicação de compatibilidade psíquica que ele mesmo não pode extravasar em momento algum. Assim, parece mais que Freddie é um terapeuta para Lancaster, já que esse homem encontra suas alegrias na companhia do primeiro. E aqui, PTA parece jogar novamente o componente homossexual, fazendo surgir uma química quase que sexual entre os dois, como na cena em que brincam abraçados no gramado. Assim como em O Segredo de Brockeback Mountain, Lancaster e Freddie são espécies de salvação um para o outro num mundo onde são completamente enforcados pela sociedade. Só que, em seu desligamento atual, Freddie parece não dar o devido valor a Lancaster, embora obviamente goste desse (quando alguém xinga o seu “mestre” é apenas mais um motivo para descer a porrada em alguém). E ainda há certa ironia no momento em que Lancaster agradece por seus parentes dizerem que não gostam de Freddie, já que isso o afasta ainda mais deles. Essa relação entre os dois parece ficar mais clara na última cena que compartilham, que ainda é o momento mais tocante do filme, quando Lancaster canta uma canção com uma letra bem sugestiva.

  E mais uma vez Philip Seymour Hoffman (um dos melhores atores da atualidade) simplesmente destrói em mais uma performance magistral. Ao mesmo tempo em que consegue transmitir autoconfiança e segurança como Lancaster, Hoffman confere instabilidade ao sujeito, que parece às vezes não evitar ser agressivo, por mais que queira. Já Amy Adams (uma atriz que amo violentamente, vide minha crítica do fraco Curvas da Vida) é cuidadosa em sua performance como Mary, estabelecendo que ama o marido, mas que o mantém sob controle absoluto, se colocando como a personagem talvez mais perigosa e forte do filme.

  Com esse elenco tão forte, PTA não fica comendo poeira na cadeira do diretor, mas consegue mais um desempenho excepcional na função. Com a mesma qualidade visual de seus trabalhos anteriores, PTA cria planos que surgem magníficos justamente por surgirem cheios de ideias, como aquele em que Lancaster cumprimenta um amigo, em frente à uma porta, apresentando a esposa (ainda fora de quadro), que quando entra fica à esquerda da tela, enquanto Freddie já entra e se estabelece do lado direito; quando vemos Lancaster centralizado na abertura de uma cortina, enquanto a imagem da mulher fica à esquerda e camuflada pela cortina; quando, na ultima cena em que vê Freddie, a mulher se estabelece no canto direito, sugerindo maior força e controle. A cena em que Lancaster e Freddie surgem paralelos em duas celas é também extraordinária para ressaltar a diferença no comportamento entre os dois, ao mesmo tempo que demonstra a compatibilidade, já que estão dividindo o mesmo quadro. Ainda, a imagem simbólica da água do mar (constantemente enfocada pelo diretor) surge com o mesmo sentido que no clássico Touro Indomável, ou seja, para sugerir a instabilidade de seus personagens. Mas talvez o melhor momento de sua direção se evidencie na cena em que Lancaster e Freddie, em momentos diferentes, dirigem em alta velocidade uma motocicleta, numa demonstração da eclosão sublimada da violência de cada um. E O Mestre ainda possui diversas temáticas trabalhadas por PTA em seus outros trabalhos, como a instabilidade psicológica (Sangue Negro e Embriagado de Amor), a homossexualidade (Magnólia e Boggie Nights) e a influência paterna e materna (todos os seus filmes anteriores).

  Muito melhor do que a maioria dos filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme (ele só não é melhor que Amor), O Mestre é mais uma obra-prima extraordinária de um dos melhores diretores surgidos na década de 90, que, com apenas seis filmes no currículo, já é um dos cineastas mais importantes da História do Cinema.

Nota: 10.0 / 10.0

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