Crítica filme “O Mestre” (The Master / 2012 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson
por
Lucas Wagner
À primeira vista, O Mestre é uma história que funciona como uma alusão à criação da
hilária religião Cientologia, e de fato, a base da trama é basicamente isso
mesmo. No entanto, o filme se revela mais como um estudo psicológico fascinante
e extremamente complexo, capaz de deixar muitos estudos de caso que podemos ver
em Psicologia comendo poeira. Dito isso, Paul Thomas Anderson (de agora em diante
nessa crítica, apenas PTA) consegue entregar mais uma obra-prima invejável, que
não fica nem um pouco atrás de nenhum de seus magistrais filmes anteriores.
Como de praxe escrito pelo próprio PTA, o
longa conta a história de Freddie Quell (Joaquin Phoenix), um homem obviamente
perturbado e com graves problemas psicológicos, que acaba no caminho do “mestre”
Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman), que desenvolve uma espécie de religião
alternativa (obviamente a Cientologia, mas aqui apelidada de “A Causa”) e
encontra em Freddie uma grande oportunidade de testar os valores de sua teoria.
A partir disso, desenvolve-se uma amizade estranha e complicada, para ambos os
lados.
Em uma das primeiras cenas, vemos Freddie com
alguns “amigos” em uma praia. Esses amigos fazem uma escultura de areia na
forma de uma mulher, e Freddie imediatamente monta em cima dela e finge estar
fazendo sexo, primeiro causando risos em seus amigos, risos esses que pouco
depois se transforma em vergonha alheia, já que a brincadeira está durando
muito tempo. Logo após, este se masturba na praia de frente para o mar, sem se
importar com quem está por perto. Logo de cara então já o vemos como um sujeito
que sofre de graves problemas psicológicos, que vão sendo trabalhados por PTA
de forma cuidadosa ao longo do filme. Grande parte dos problemas do
protagonista parecem ser de natureza sexual, já que Freddie parece ver alguma
forma de pornografia em tudo, como fica claro na cena em que, em um estado meio
que de sonolência, enxerga todas as mulheres que estão na casa só que sem
roupas. No entanto, no que se refere ao seu comportamento com mulheres, ele
parece por demais ambíguo, parecendo fugir dessas sem nunca saber descrever o
por que. Em um encontro com uma linda mulher, ele adormece; ao invés de voltar
para a possivelmente mulher de seus sonhos, prefere deixá-la para lá, esperando
por ele, enquanto este não dá nem notícias. Aparentemente, são os homens que
lhe chamam mais a atenção. Observem como ele parece prestar muito mais atenção no
genro de Lancaster do que em uma mulher que lhe esfrega a mão na perna. Além
disso, a cena em que lhe é aplicado um teste de Rorschach é usada por PTA já
para estabelecer alguma relação com a homossexualidade, já que, se
primeiramente vê uma vagina, na figura seguinte vê um pênis entrando numa
vagina, e na seguinte, apenas um pênis.
Só que estamos falando dos anos 50, uma época
mais moralista onde a homossexualidade ainda não era vista com a visão mais
liberal que vemos hoje. Freddie então parece descarregar esses “impulsos” atrás
de uma forma subliminar, psicopatológica de agressão e violência, o que também
encontra eco na relação conturbada que obviamente teve com o pai e,
principalmente, a mãe, algo que lhe serviu de profunda experiência negativa, já
que ele sempre evita falar da mãe. Só que, percebendo que esse comportamento
não lhe trouxe nada senão infortúnios sociais, Freddie procura sufocar esses impulsos
de forma tão extremada que surte até mesmo efeitos visíveis em seu corpo,
apenas aumentando o seu modo peculiar de ser, parecendo sempre inconsciente de
seus bizarros comportamentos (como os citados no início do parágrafo anterior).
Freddie parece mesmo uma bomba sempre pronta para explodir, que, talvez para se
acalmar um pouco, fica constantemente em movimento, seja em sua vida (na mudança
de empregos e ambientes) ou seja até mesmo literalmente (quando fica andando
sem parar). E essa estrangulação psicológica que aplicou a si mesmo
aparentemente apenas lhe promoveu uma cisão de sua personalidade, criando na
verdade um pequeno monstro que, mesmo aparentemente gentil e inofensivo, não
perde uma oportunidade de encher alguém de porrada, muitas vezes guiando essa
agressividade sobre si mesmo, como quando se dá vários tapas dolorosos ao errar
uma tarefa, ou quando, de modo mais sutil, se faz ouvir detalhes sobre a nova
vida de uma antiga paixão.
E aqui entra a sublime atuação de Joaquin
Phoenix, o verdadeiro merecedor do Oscar de Melhor Ator (muito mais do que
Daniel Day Lewis por Lincoln, que inevitavelmente
vai ganhar). Interpretando mais um sujeito com traços infantilizados (como fez
em Amantes, Um Sonho Sem Limites, Gladiador,
Brigada 49, etc), Phoenix consegue a
sua melhor performance até hoje ao se entregar aos mais excruciantes detalhes de
Freddie. Com o corpo sempre encurvado e a boca semicerrada, Phoenix ilustra a
força absurda que Freddie usa, mesmo que talvez inconscientemente, para se
manter sob controle, como se usasse a introspecção forçada (algo evidenciado também
pela dicção sempre atrapalhada pela mandíbula apertada) como uma forma de
proteger a si mesmo e os outros de sua própria personalidade. Phoenix ainda
consegue nos fazer sentir certa pena de Freddie, sempre evidenciando sua
fragilidade e instabilidade.
Mas não é só em Freddie que O Mestre tem sua força. Aliás, o longa
fica incompleto sem dois outros lados: Lancaster e Mary. Aparentemente
interessado em expandir seus conhecimentos e o alcance de sua religião,
Lancaster é na verdade um homem solitário que vive sob os comandos indiretos de
sua esposa, Mary (Amy Adams), que o controla de forma sutil, como quando o
masturba no banheiro, ao mesmo tempo em que lhe dita “ordens” no ouvido, ou
numa das últimas cenas, quando esta parece dizer tudo que “precisa” ser dito,
enquanto ele fica calado. Lancaster também tem grande disposição à violência e
assim, o seu interesse “científico” em Freddie pode ser mais uma indicação de
compatibilidade psíquica que ele mesmo não pode extravasar em momento algum.
Assim, parece mais que Freddie é um terapeuta para Lancaster, já que esse homem
encontra suas alegrias na companhia do primeiro. E aqui, PTA parece jogar
novamente o componente homossexual, fazendo surgir uma química quase que sexual
entre os dois, como na cena em que brincam abraçados no gramado. Assim como em O Segredo de Brockeback Mountain,
Lancaster e Freddie são espécies de salvação um para o outro num mundo onde são
completamente enforcados pela sociedade. Só que, em seu desligamento atual,
Freddie parece não dar o devido valor a Lancaster, embora obviamente goste
desse (quando alguém xinga o seu “mestre” é apenas mais um motivo para descer a
porrada em alguém). E ainda há certa ironia no momento em que Lancaster
agradece por seus parentes dizerem que não gostam de Freddie, já que isso o
afasta ainda mais deles. Essa relação entre os dois parece ficar mais clara na
última cena que compartilham, que ainda é o momento mais tocante do filme,
quando Lancaster canta uma canção com uma letra bem sugestiva.
E mais uma vez Philip Seymour Hoffman (um dos
melhores atores da atualidade) simplesmente destrói em mais uma performance
magistral. Ao mesmo tempo em que consegue transmitir autoconfiança e segurança
como Lancaster, Hoffman confere instabilidade ao sujeito, que parece às vezes
não evitar ser agressivo, por mais que queira. Já Amy Adams (uma atriz que amo
violentamente, vide minha crítica do fraco Curvas
da Vida) é cuidadosa em sua performance como Mary, estabelecendo que ama o
marido, mas que o mantém sob controle absoluto, se colocando como a personagem
talvez mais perigosa e forte do filme.
Com esse elenco tão forte, PTA não fica
comendo poeira na cadeira do diretor, mas consegue mais um desempenho
excepcional na função. Com a mesma qualidade visual de seus trabalhos
anteriores, PTA cria planos que surgem magníficos justamente por surgirem
cheios de ideias, como aquele em que Lancaster cumprimenta um amigo, em frente
à uma porta, apresentando a esposa (ainda fora de quadro), que quando entra
fica à esquerda da tela, enquanto Freddie já entra e se estabelece do lado
direito; quando vemos Lancaster centralizado na abertura de uma cortina,
enquanto a imagem da mulher fica à esquerda e camuflada pela cortina; quando,
na ultima cena em que vê Freddie, a mulher se estabelece no canto direito,
sugerindo maior força e controle. A cena em que Lancaster e Freddie surgem
paralelos em duas celas é também extraordinária para ressaltar a diferença no
comportamento entre os dois, ao mesmo tempo que demonstra a compatibilidade, já
que estão dividindo o mesmo quadro. Ainda, a imagem simbólica da água do mar
(constantemente enfocada pelo diretor) surge com o mesmo sentido que no
clássico Touro Indomável, ou seja,
para sugerir a instabilidade de seus personagens. Mas talvez o melhor momento
de sua direção se evidencie na cena em que Lancaster e Freddie, em momentos
diferentes, dirigem em alta velocidade uma motocicleta, numa demonstração da
eclosão sublimada da violência de cada um. E O Mestre ainda possui diversas temáticas trabalhadas por PTA em
seus outros trabalhos, como a instabilidade psicológica (Sangue Negro e Embriagado de
Amor), a homossexualidade (Magnólia e
Boggie Nights) e a influência paterna
e materna (todos os seus filmes anteriores).
Muito
melhor do que a maioria dos filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme (ele só
não é melhor que Amor), O Mestre é mais uma obra-prima
extraordinária de um dos melhores diretores surgidos na década de 90, que, com
apenas seis filmes no currículo, já é um dos cineastas mais importantes da
História do Cinema.
Nota:
10.0 / 10.0
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