Resenha filme "Cosmópolis" (Cosmopolis / 2012 / França, Canadá, Portugal, Itália) dir. David Cronenberg
por Lucas Wagner
"Nós multiplicamos nossas
possessões mas reduzimos nossos valores. Falamos demais, amamos raramente, e
odiamos freqüentemente. Nós aprendemos como fazer uma vida mas não como viver.
Adcionamos anos à nossa vida, mas não vida aos nossos anos" George Carlin
Um dos intelectuais
mais fascinantes da atualidade é, sem dúvidas, o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman, que busca estudar como se dão as relações da pós-modernidade. Um
conceito com que ele sempre trabalha é o de liquidez,
de vida líquida. A matéria em estado líquido escorrega por entre nossos
dedos; nós não somos capazes de mantê-la conosco por mais do que alguns
segundos; está sempre escapando. Bauman observa as relações, os sentimentos
(como Amor ou Medo) e a própria Vida como um todo, nesta pós-modernidade, como
melhor comparada à liquidez: nada é permanente; nós e nossos relacionamentos
fogem de nós mesmos, podem mudar em um espaço de segundos. Nessa
contemporaniedade, o que mais parece se pregar é o desapego emocional, a frieza
e calculismo que podem levar à perfeição das ações no modo de produção
capitalista em que vivemos. É a “filosofia da mochila vazia”, onde os objetos
que carregaríamos nessa mochila seriam pessoas ou qualquer outro componente
emocional que pese e, consequentemente, atrase o jovem promissor da sua
escalada ao sucesso, riqueza e poder. Desse modo, vivemos em um mundo onde essa
liquidez é desejada, que vai levando a tal processo de desestruturação psíquica
que, sem dúvida, pode acabar caindo em uma manifestação inexoravelmente
psicopatológica. Afinal, quem é capaz de se manter tão frio, tão apático e tão
calculista assim por tanto tempo, e ainda ser feliz?
Em Cosmópolis, o cineasta canadense David
Cronenberg mergulha em reflexões profundas e extremamente complexas sobre a
pós-modernidade, sobre a liquidez da vida contemporânea, o vazio, a frieza e a
loucura a que tudo isso pode levar, através de um estudo de personagem
fascinante e assustador, com um caráter levemente surrealista (como muitos dos
seus trabalhos, por sinal). No caminho, Cronenberg cria um longa marcante e
niilista que pode funcionar como uma curiosa mistura dos inesquecíveis Clube da Luta e Waking Life, do primeiro pegando a análise do vazio da vida moderna
que pode levar à loucura, e do segundo a estrutura, onde o protagonista vai se
encontrando com diferentes figuras em seu caminho, e com cada uma, trava
reflexões filosóficas/existenciais.
O protagonista é Eric
Packer (Robert Pattinson), jovem gênio multimilionário com 28 anos de idade. Em
um determinado dia, quando o presidente está na cidade (que é Nova York), um
rapper famoso morreu, e está tendo um enorme funeral, e, ainda por cima, vemos
uma manifestação anarquista, que afirma que a moeda atual é o rato (que ilustra
bem a falta de sentido e propósito do dinheiro na atualidade), Packer decide
que deve cortar seu cabelo, custe o que custar, e assim, dentro de sua limosine
futurista, enfrenta um trânsito dos infernos ao mesmo tempo em que trava
diversas reuniões importantes. Packer é, sem a menor sombra de dúvida, um
personagem extremamente complexo. Charmoso e egocêntrico, ele é a perfeita
imagem de um rapaz que, ainda no fim da adolescência, descobriu uma certa forma
de genialidade que o levaria longe, e assim entrou de cabeça nesse estilo de
vida, deixando que cada milímetro desse estilo entrasse em seu cerne, tanto as
partes boas (dinheiro, mulheres, etc) quanto às ruins (como o desapego e a
frieza). Packer é apático, nada parece lhe impressionar, fazer com que se
apaixone. Nada lhe encanta. O mundo é um lugar prático, onde ganhamos dinheiro,
fazemos sexo, compramos coisas e... bem, cortamos cabelo. Ele já está tão
impregnado com esse modo de viver, que qualquer outro lhe parece alienígena, e
assim, ele parece incapaz de ser compassivo, de enxergar os sentimentos de
outras pessoas, e os levá-los em conta, como fica bem claro no seu
relacionamento com a esposa, com a qual só quer saber quando farão sexo de novo
(e enquanto não fazem, ele transa com outras mulheres), e que se surpreende com
o fato dela fumar (algo que faz desde os 15 anos e ele nunca tinha notado nas
duas semanas em que estão casados). E se ele é incapaz de enxergar sentimentos
alheios, isso não é diferente para ele mesmo: ele não consegue descrever suas
próprias emoções, angústias e nem o que quer da vida, a longo prazo. Ele parece
comprar coisas com o objetivo único de comprar, já que o dinheiro é um fim em
si mesmo nos dias de hoje. Assim, o fato de ele estar sempre dentro de sua limusine
funciona com eficiente simbolismo sobre ele mesmo, já que está constantemente
em movimento (como um business man bem
sucedido da atualidade) e está sempre à parte do que ocorre fora dela, que tem
um aspecto futurista e tecnológico que não encontra igual no mundo fora; sendo
à prova de som, ele não escuta nada do lado de fora, e ainda pode deixar as
janelas todas escuras, e assim recostar em seu trono (é um trono mesmo,
literalmente) dentro do carro e viver sua vida.
Vaidoso e com uma
preocupação com a morte (talvez o único aspecto que lhe torna humano na metade
inicial do longa, mas ele nem sabe bem o por quê disso), ele faz check-ups médicos todos os dias
(incluindo dolorosos exames de próstata), e ao descobrir que tem a próstata
assimétrica (nada grave, por sinal), enxergamos o estopim que o levará à uma
cisão psíquica, deixando-o completamente louco em uma busca existencial
paranoica. Essa próstata assimétrica quebrou a simetria perfeita de sua vida,
assinalou um ponto fraco, um erro, uma deficiência, e isso o leva a, aos
poucos, ir tomando consciência de sua apatia, e ao perceber-se completamente
incapaz de sentir algo, que tenta encontrar formas cada vez mais absurdas e
desesperadas de fazê-lo. Seu leve problema desencadeou isso tudo, pois o trouxe
à vida real, mortal, na qual ele não tem um padrão para se comportar. Seja na
morte, mutilação, assassinato, Packer tenta sentir alguma coisa, acabar com
essa anestesia que lhe corrói a alma. Mas o mais complexo não é nem isso, já
que se prestarmos bem atenção, perceberemos que ele nem sabe que esse é o seu
objetivo. Como em muitos trabalhos de Cronenberg (como A Mosca, Videodrome, etc), acompanhamos aqui uma metamorfose, algo
que ele deixa claro, inteligentemente, através do figurino de Parker: se no
início está de terno completo, e óculos escuros, vai perdendo vários pedaços da
indumentária (e no fim, chega a perder até um pouco de seu cabelo), algo que
ilustra com perfeição a queda, a destruição de personalidade pela qual o
personagem passa. É como se tivesse perdendo suas máscaras e encarando a vida
pela primeira vez.
Essa busca do protagonista
é (surpresa!) extraordinariamente bem representada por Robert Pattinson. Muito
disso pode ser mesmo pelo fato de que a eterna poker face, inexpressividade do ator, sejam perfeitamente adequadas
ao personagem. Mas, em alguns momentos, podemos perceber que Pattinson
realmente sabe o que está fazendo, dando uma dimensão extra à Packer, quando
este surge com lágrimas nos olhos ao saber da morte de um rapper do qual
gostava, ou na longa sequência de conversa entre ele e Benno (Paul Giamatti,
excepcional) no fim do filme. Por essa eu não esperava, sinceramente.
Mas essa batalha
existencial de Packer, esse estudo de personagem, não possui um fim em si
mesmo. Cronenberg usa o protagonista como um espelho para a busca incessante
que nós temos em nós mesmos. Cada vez mais nos vemos mais frouxos, mais
anestesiados pela vida, completamente dormentes frente à realidade. Nem sabemos
bem quem somos, para ser sincero, e usamos inúmeras máscaras no cotidiano, de
beleza, de um ideal falso. Nós estamos sempre vendendo uma imagem. A diferença
entre nós e Packer, é que esse já passou para um nível superior de apatia, e
chegou à loucura. Na pós-modernidade, tão gritantemente materialista, podemos
enxergar uma melancólica falta de propósito no nosso existir. O que buscamos?
Sonhos? Amor? Poder? Tudo isso são desejos abstratos, que busca inserir um
objetivo claro para cada um. Mas e quando alcançamos tudo que materialmente
podemos alcançar? O que fazer então? O que guiará, norteará nosso
comportamento? Além disso (e isso talvez seja ainda mais importante), como podemos
fazer para nos manter fiéis a nós mesmos, sem nos corromper na visão niilista
que parece essencial na busca do sucesso de hoje em dia? De fato, pelo que
podemos enxergar (e como Bauman tanto comenta), para alcançarmos o poder, o
sucesso, o status, devemos abrir mão de muito do lado emocional, do amor, dos
relacionamentos, pois isso (e estou sendo realista, e não pessimista) isso atrasará
completamente seu propósito de sucesso. Não dá mais para conciliar os dois.
Desse modo, parece que somos presos num permanente dilema existencial: buscar o
amor/relacionamentos, ou buscar o sucesso? Com o primeiro, podemos encontrar
sentimentos profundos, mas também uma existência mais desconfortável e difícil.
Com o segundo, nos tornamos imagens a serem veneradas, lendas exaltadas, e
damos (talvez) um significado para nossa vida que contemple mais do que o curto
espaço de tempo que passamos nesse planeta. Porém, dependendo da intensidade
com que fazemos isso, perdemos a nós mesmos, como acontece com Packer. E isso é
lindamente demonstrado por Cronenberg na cena do barbeiro, em que o
guarda-costas do protagonista escuta histórias sobre Parker e seu pai, contadas
pelo barbeiro, e nessa hora, o diretor parece deixar Packer de lado, focando
sua câmera mais nos dois outros personagens em cena.
Cronenberg, aliás,
tem um trabalho excepcional, conseguindo dar uma dose certa de frieza e apatia
à sua direção. Seu trabalho é seco, sem graça, não possuindo em nenhum momento
algo que nos deixa visualmente embasbacados (a não ser o interior da sua limusine).
E isso é proposital, serve maravilhosamente aos objetivos do filme em si, de
vazio da vida na pós-modernidade. A sensação transmitida por sua direção é de
completo niilismo, tédio (o que levou muitos espectadores a sair da sala antes
da hora, por sinal). E não só na direção, mas a trilha sonora de Howard Shore
(parceiro habitual do cineasta, mas que é mais conhecido pelo seu inesquecível
trabalho na trilogia O Senhor dos Anéis),
também alcança bem esse objetivo de apatia e niilismo. Além disso, o roteiro do
próprio Cronenberg cria cenas maravilhosas em que Packer trava diálogos filosóficos/existências
impecáveis e profundos com diversos interlocutores; e são sempre reflexões
sobre a existência no mundo capitalista pós-moderno. Apesar disso, na metade
inicial do filme, Cronenberg investe, erroneamente, em cenas de diálogos com
determinados interlocutores que não acrescentam nada ao seu trabalho, mas esse
é basicamente o único erro de um trabalho tão bom.
Contando com uma
conclusão perfeitamente abrupta depois de uma longa (e fantástica) sequência de
conversa, que ilustra com brilhantismo o lado do mais rico e do mais pobre na
contemporaniedade, Cosmópolis é um
feliz retorno à boa forma de Cronenberg depois do seu regular Um Método Perigoso. É um filme complexo,
intrigante, triste e niilista, que nos lança de volta a nossas vidas com um
gosto amargo de desespero e desilusão por parte da realidade. E essa é
justamente uma das mais belas funções da Arte: nos dar um tapa na cara quando
precisamos.
*Outras resenhas minhas de filmes dirigidos por David Cronenberg:
-Um Método Perigoso (A Dangerous Method / 2011 / EUA):
http://mestredeobras.blogspot.com.br/2012/05/resenha-filme-um-metodo-perigoso.html
http://mestredeobras.blogspot.com.br/2012/05/resenha-filme-um-metodo-perigoso.html
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