Resenha filme "Argo" (Argo / 2012 / EUA) dir. Ben Afleck
por Lucas Wagner
O ator Ben Afleck foi, para muitos, durante a
década passada, sinal de baixa qualidade. Era só o seu nome aparecer no elenco
de um filme que muita gente já virava a cara. Não é para menos, já que, depois
de ganhar um Oscar de Melhor Roteiro Original ao lado de seu amigo Matt Damon,
por Gênio Indomável, o ator trabalhou
em um sem fim de projetos abomináveis tanto para quem gosta de um bom Cinema,
quanto para quem só quer diversão. No entanto, em 2007, estreou na direção com Medo da Verdade, um longa que
surpreendeu por sua ambição e complexidade ao tratar de uma questão moral
extremamente ambígua. Se, no entanto, com esse filme ele encantou a crítica,
foi só com seu segundo trabalho na direção, em 2010, com Atração Perigosa, que ele também fisgou o público (sem deixar a
crítica de lado) com uma narrativa ágil e bem estruturada, além de ser um belo
estudo de personagem. Agora ele lança esse Argo,
que é mais uma prova de que ele pode não ser um grande ator, mas sem dúvida
é um cineasta sério e competente, que se torna cada vez mais maduro e seguro a
cada filme seu.
O longa conta uma história real do mundo da
espionagem, que só veio a ser revelada na última década, embora tenha
acontecido no intervalo de 1979-1981. E é uma história fascinante, tão estranha
que o fato de ser baseada em fatos deixa ainda mais interessante. Diante da
queda do presidente Mohammad Mosaddeq, o poder do Irã foi instituído ao xã Reza
Palehvi, que, apoiado pelos EUA e pela Inglaterra, se tornou um verdadeiro
psicopata, torturando a população sem dó. Quando ele percebeu que tinha ido
longe demais, procura arrego nos EUA, enquanto a população do Irã, querendo o
seu sangue, invade a embaixada norte-americana, fazendo todos de reféns, a não
ser cinco, que escapam e encontram refúgio na embaixada canadense. Antes que os
manifestantes encontrem estes refugiados, a CIA chama o especialista em
extração, Tony Mendez (Ben Afleck), que, para resgatá-los, tem a ideia de
montar uma equipe de cinema canadense, e sob a pretensão de filmar um filme
falso de ficção científica (de nome Argo), entrar no Irã e resgatar os
refugiados em segurança.
Primeira coisa a comentar é que Argo claramente evidencia uma mudança na
direção de Afleck, já que seus dois outros trabalhos são carregados de um tom
pessoal e melancólico de pessoas que nasceram e cresceram na parte pobre de
Boston (como o próprio Ben Afleck) e que foram arrastadas para o crime e as
drogas justamente pela falta de perspectiva de uma vida melhor. Principalmente Atração Perigosa, cuja temática é 100%
centrada na dificuldade de sair da vida de bandido, sendo que é esse o modo
como você cresceu e se adaptou à sociedade. Em Argo, nada vemos de Boston. O longa é carregado de um tom político
e crítico, globalizado, o que é mais do que adequado se percebermos como o
diretor decidiu centrar seu filme.
Um filme como esse, contando um feito tão heroico
da CIA para salvar seu compatriotas em apuros, poderia facilmente, nas mãos de
um Michael Bay da vida, cair na desgraça de ser ufanista, estupidamente
patriótico, algo que sempre me desperta nojo. Felizmente, Afleck se mostrou
mais inteligente do que isso, e assim emprega, logo na abertura, uma narração
em off (numa cena dinâmica e
esteticamente interessante) contando os acontecimentos anteriores que
contextualizam a trama, e já deixam
claro que os EUA não tem nada de santo, e sim de demônio diante de tudo que
levou aos manifestantes iranianos a atos de violência tão brutais. Esse senso
crítico persegue todo o longa, que não deixa de atacar nem Hollywood (como
comentarei mais abaixo), e ainda consegue dar um soco mortal na face do governo
norte-americano ao mostrá-los buscando abandonar uma operação que tem grandes
probabilidades de dar certo, por outra infinitamente mais arriscada, que coloca
em risco a vida de norte-americanos e iranianos, ainda tendo o perigo de
iniciar uma guerra, simplesmente porque, caso a operação não desse certo (nem a
inicial e nem a mais arriscada), pelo menos o governo dos EUA ficaria com uma
imagem mais grandiosa diante da segunda alternativa. Afleck ainda foi extremamente
feliz ao buscar conferir um tom ainda mais realista, de que está contando a
verdade e não inventando uma história feliz de Cinema, ao usar bastante cenas
de arquivo, coadunando-as com perfeição com outras cenas filmadas por ele, o
que, além de dinâmico e interessante, deixam mais claras as suas propostas de
seriedade.
Dentre todos os seus acertos, no entanto, o
que faz de Argo um filme tão notável
é provavelmente a sua visão de nunca buscar apontar alguém como vilão. Sim, ele
critica atitudes do governo norte-americano, ao mesmo tempo em que, em hora nenhuma,
mostra apoiar a brutalidade e o ódio inflado que os iranianos lançam contra os
EUA, por estes protegerem o xã Reza Palehvi. Mas Afleck parece mais preocupado
em enxergar os indivíduos nessa bagunça toda como seres humanos, que não têm
culpa de que seu governo seja um lixo. Algum espectador babaca com o ego
inflado e sem senso crítico ou maturidade poderia gritar totalmente em apoio
dos iranianos, dizendo que os norte-americanos não valem nada pelo que fizeram
e que os manifestantes estão certíssimos em seus atos de violência, além de
ficarem criticando a missão o tempo todo, afirmando que os refugiados mereciam
morrer pelo o que seu país tinha feito ao Irã. Mas não. O cineasta dedica até um
bom tempo a filmar os refugiados, angustiados, tremendo ao simplesmente ouvir
um barulho forte, ou um bater na porta. Eles são seres humanos. Se são
norte-americanos, isso é um mero detalhe. Ainda é impossível não simpatizar com
os iranianos justamente pelo absurdo que sofreram com Palehvi, que foi posto no
poder por interesses ideológicos dos EUA, e compadecemos deles em cenas como a
que mostra um iraniano gritando de raiva no mercado. Argo não tem um vilão, mesmo que estejamos torcendo por determinado
grupo em determinada parte. Seus personagens são pessoas que vivem sob a ordem
de um governo irracional (EUA) ou do caos, angústia e orgulho ferido (Irã). Nós
compreendemos cada lado. Assim, muitos podem acabar confundindo o sentimento de
orgulho que se dá em determinado momento do filme como simples patriotismo,
enquanto não é exatamente isso, mas orgulho pelo esforço de cada um envolvido
que se esforçou tanto para chegar a determinado resultado. E isso é bem mais do
que patriotismo.
Ainda,
o filme capta um momento e uma visão bem crítica de Hollywood. Depois do
lançamento de Star Wars, a esmagadora
maioria dos projetos hollywoodianos era centrada apenas no entretenimento, numa
fuga alucinada da realidade. Não que um filme voltado apenas para o puro
entretenimento seja algo ruim, mas o caso era que, diante de uma realidade tão
perversa, era um absurdo que os cineasta não virassem suas câmeras a essas
situações. Assim, o letreiro de Hollywood destruído que aparece em determinado
momento, serve como símbolo perfeito para essa situação. Mas, mais ainda do que
isso, naquele que é talvez o momento mais inspirado da direção de Afleck, vemos
duas cenas ao mesmo tempo, contrabalanceado uma com a outra, um discurso com o
outro, sendo que em uma vemos uma cena de tortura dos reféns no Irã, e ouvimos
uma declaração sombria voltada para os EUA, e na outra vemos vários atores
fantasiados de personagens coloridos, lendo um roteiro inútil para uma enorme
quantidade de repórteres, que parecem mais preocupado com isso do que a
assustadora realidade que vemos na outra cena. Uma abordagem bem corajosa,
convenhamos.
Afleck demonstra ainda mais segurança do que
nos seus dois últimos trabalhos, e consegue dividir o longa em três atos bem
distintos, contando a história a partir de múltiplas perspectivas, mas nunca
deixando o resultado confuso ou chato. Ele consegue ir de cenas pesadas no Irã,
para momentos mais descontraídos em Hollywood com perfeição, ainda mais para
deixar bem clara a diferença das realidades, algo que fica ainda mais marcado
pela fotografia de Rodrigo Prieto, que investe em tons mais escuros e dessaturados
para mostrar o Irã ou a CIA, e tons excessivamente claros e coloridos
(justamente para dar um ar de exagero) quando filma Hollywood. Afleck ainda é
perfeito na hora de criar tensão, construindo sequências de suspense muito competentes,
como a do clímax, embora nessa ele seja levemente infeliz ao incluir diversos
momentos em que os personagens se safam por pouco, o que parece meio repetitivo
e forçado. Mas isso não chega a depreciar o longa.
O único erro grave, no entanto, é em relação
ao protagonista. Não exatamente à atuação de Afleck (embora eu ache que Matt
Damon seria mais adequado ao papel). O cineasta reconhece suas limitações como
ator, e trabalha, em seus filmes, com papéis que sabe que atuará com conforto.
O problema é que ele é completamente unidimensional. Afleck chega até a incluir
uma subtrama envolvendo a família desestruturada dele, para deixá-lo um pouco
mais profundo. Mas isso não adianta nada, é completa perda de tempo, e não se
inclui de maneira alguma ao contexto do filme, muito menos cria um arco
dramático para o personagem. Pior de tudo é que, justamente pela
unidimensionalidade dele, seus sacrifícios no terceiro ato são totalmente
incompreensíveis. Quem se dá bem no elenco é mesmo Alan Arkin (oscarizado por Pequena Miss Sunshine) e Bryan Cranston
(o Walter White de Breaking Bad).
Alan Arkin transforma o cineasta Lester Siegel em uma figura interessantíssima
e complexa, irônica ao extremo. Já Bryan Cranston, que é tão genial quando
interpreta Walter White no seriado que citei, nunca parece ter um bom
personagem no Cinema, e esse ano mesmo tive que criticar suas atuações no
legalzinho O Vingador do Futuro e no
abominável Rock of Ages. Mas aqui,
seu Jack O’Donnell é um sujeito complexo que, em determinado momento, mostra
que é bem mais humano do que aparentava. John Goodman e Kyle Chandler ainda
estão bem divertidos em seus papéis, mas não há muito o que falar.
Contando com falas inspiradas e inteligentes,
além de muitas vezes engraçadas (“Se vou fazer um filme falso, vai ser um
sucesso falso”), Argo é um filme
realmente ótimo, inteligente e complexo, que prova cada vez mais que Ben Afleck
é um cineasta excepcional e ambicioso, pronto para se juntar a Sean Penn e Selton Mello no
ramo de atores que viraram grandes diretores (gostaria de dizer que Clint
Eastwood é também, mas a qualidade de seus filmes caiu demais de 2008 para cá,
então deixa pra lá).
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