sexta-feira, 9 de novembro de 2012


Resenha filme "Argo" (Argo / 2012 / EUA) dir. Ben Afleck

por Lucas Wagner


  O ator Ben Afleck foi, para muitos, durante a década passada, sinal de baixa qualidade. Era só o seu nome aparecer no elenco de um filme que muita gente já virava a cara. Não é para menos, já que, depois de ganhar um Oscar de Melhor Roteiro Original ao lado de seu amigo Matt Damon, por Gênio Indomável, o ator trabalhou em um sem fim de projetos abomináveis tanto para quem gosta de um bom Cinema, quanto para quem só quer diversão. No entanto, em 2007, estreou na direção com Medo da Verdade, um longa que surpreendeu por sua ambição e complexidade ao tratar de uma questão moral extremamente ambígua. Se, no entanto, com esse filme ele encantou a crítica, foi só com seu segundo trabalho na direção, em 2010, com Atração Perigosa, que ele também fisgou o público (sem deixar a crítica de lado) com uma narrativa ágil e bem estruturada, além de ser um belo estudo de personagem. Agora ele lança esse Argo, que é mais uma prova de que ele pode não ser um grande ator, mas sem dúvida é um cineasta sério e competente, que se torna cada vez mais maduro e seguro a cada filme seu.

  O longa conta uma história real do mundo da espionagem, que só veio a ser revelada na última década, embora tenha acontecido no intervalo de 1979-1981. E é uma história fascinante, tão estranha que o fato de ser baseada em fatos deixa ainda mais interessante. Diante da queda do presidente Mohammad Mosaddeq, o poder do Irã foi instituído ao xã Reza Palehvi, que, apoiado pelos EUA e pela Inglaterra, se tornou um verdadeiro psicopata, torturando a população sem dó. Quando ele percebeu que tinha ido longe demais, procura arrego nos EUA, enquanto a população do Irã, querendo o seu sangue, invade a embaixada norte-americana, fazendo todos de reféns, a não ser cinco, que escapam e encontram refúgio na embaixada canadense. Antes que os manifestantes encontrem estes refugiados, a CIA chama o especialista em extração, Tony Mendez (Ben Afleck), que, para resgatá-los, tem a ideia de montar uma equipe de cinema canadense, e sob a pretensão de filmar um filme falso de ficção científica (de nome Argo), entrar no Irã e resgatar os refugiados em segurança.

  Primeira coisa a comentar é que Argo claramente evidencia uma mudança na direção de Afleck, já que seus dois outros trabalhos são carregados de um tom pessoal e melancólico de pessoas que nasceram e cresceram na parte pobre de Boston (como o próprio Ben Afleck) e que foram arrastadas para o crime e as drogas justamente pela falta de perspectiva de uma vida melhor. Principalmente Atração Perigosa, cuja temática é 100% centrada na dificuldade de sair da vida de bandido, sendo que é esse o modo como você cresceu e se adaptou à sociedade. Em Argo, nada vemos de Boston. O longa é carregado de um tom político e crítico, globalizado, o que é mais do que adequado se percebermos como o diretor decidiu centrar seu filme.

  Um filme como esse, contando um feito tão heroico da CIA para salvar seu compatriotas em apuros, poderia facilmente, nas mãos de um Michael Bay da vida, cair na desgraça de ser ufanista, estupidamente patriótico, algo que sempre me desperta nojo. Felizmente, Afleck se mostrou mais inteligente do que isso, e assim emprega, logo na abertura, uma narração em off (numa cena dinâmica e esteticamente interessante)  contando os acontecimentos anteriores que contextualizam a  trama, e já deixam claro que os EUA não tem nada de santo, e sim de demônio diante de tudo que levou aos manifestantes iranianos a atos de violência tão brutais. Esse senso crítico persegue todo o longa, que não deixa de atacar nem Hollywood (como comentarei mais abaixo), e ainda consegue dar um soco mortal na face do governo norte-americano ao mostrá-los buscando abandonar uma operação que tem grandes probabilidades de dar certo, por outra infinitamente mais arriscada, que coloca em risco a vida de norte-americanos e iranianos, ainda tendo o perigo de iniciar uma guerra, simplesmente porque, caso a operação não desse certo (nem a inicial e nem a mais arriscada), pelo menos o governo dos EUA ficaria com uma imagem mais grandiosa diante da segunda alternativa. Afleck ainda foi extremamente feliz ao buscar conferir um tom ainda mais realista, de que está contando a verdade e não inventando uma história feliz de Cinema, ao usar bastante cenas de arquivo, coadunando-as com perfeição com outras cenas filmadas por ele, o que, além de dinâmico e interessante, deixam mais claras as suas propostas de seriedade.

  Dentre todos os seus acertos, no entanto, o que faz de Argo um filme tão notável é provavelmente a sua visão de nunca buscar apontar alguém como vilão. Sim, ele critica atitudes do governo norte-americano, ao mesmo tempo em que, em hora nenhuma, mostra apoiar a brutalidade e o ódio inflado que os iranianos lançam contra os EUA, por estes protegerem o xã Reza Palehvi. Mas Afleck parece mais preocupado em enxergar os indivíduos nessa bagunça toda como seres humanos, que não têm culpa de que seu governo seja um lixo. Algum espectador babaca com o ego inflado e sem senso crítico ou maturidade poderia gritar totalmente em apoio dos iranianos, dizendo que os norte-americanos não valem nada pelo que fizeram e que os manifestantes estão certíssimos em seus atos de violência, além de ficarem criticando a missão o tempo todo, afirmando que os refugiados mereciam morrer pelo o que seu país tinha feito ao Irã. Mas não. O cineasta dedica até um bom tempo a filmar os refugiados, angustiados, tremendo ao simplesmente ouvir um barulho forte, ou um bater na porta. Eles são seres humanos. Se são norte-americanos, isso é um mero detalhe. Ainda é impossível não simpatizar com os iranianos justamente pelo absurdo que sofreram com Palehvi, que foi posto no poder por interesses ideológicos dos EUA, e compadecemos deles em cenas como a que mostra um iraniano gritando de raiva no mercado. Argo não tem um vilão, mesmo que estejamos torcendo por determinado grupo em determinada parte. Seus personagens são pessoas que vivem sob a ordem de um governo irracional (EUA) ou do caos, angústia e orgulho ferido (Irã). Nós compreendemos cada lado. Assim, muitos podem acabar confundindo o sentimento de orgulho que se dá em determinado momento do filme como simples patriotismo, enquanto não é exatamente isso, mas orgulho pelo esforço de cada um envolvido que se esforçou tanto para chegar a determinado resultado. E isso é bem mais do que patriotismo.

  Ainda, o filme capta um momento e uma visão bem crítica de Hollywood. Depois do lançamento de Star Wars, a esmagadora maioria dos projetos hollywoodianos era centrada apenas no entretenimento, numa fuga alucinada da realidade. Não que um filme voltado apenas para o puro entretenimento seja algo ruim, mas o caso era que, diante de uma realidade tão perversa, era um absurdo que os cineasta não virassem suas câmeras a essas situações. Assim, o letreiro de Hollywood destruído que aparece em determinado momento, serve como símbolo perfeito para essa situação. Mas, mais ainda do que isso, naquele que é talvez o momento mais inspirado da direção de Afleck, vemos duas cenas ao mesmo tempo, contrabalanceado uma com a outra, um discurso com o outro, sendo que em uma vemos uma cena de tortura dos reféns no Irã, e ouvimos uma declaração sombria voltada para os EUA, e na outra vemos vários atores fantasiados de personagens coloridos, lendo um roteiro inútil para uma enorme quantidade de repórteres, que parecem mais preocupado com isso do que a assustadora realidade que vemos na outra cena. Uma abordagem bem corajosa, convenhamos.

  Afleck demonstra ainda mais segurança do que nos seus dois últimos trabalhos, e consegue dividir o longa em três atos bem distintos, contando a história a partir de múltiplas perspectivas, mas nunca deixando o resultado confuso ou chato. Ele consegue ir de cenas pesadas no Irã, para momentos mais descontraídos em Hollywood com perfeição, ainda mais para deixar bem clara a diferença das realidades, algo que fica ainda mais marcado pela fotografia de Rodrigo Prieto, que investe em tons mais escuros e dessaturados para mostrar o Irã ou a CIA, e tons excessivamente claros e coloridos (justamente para dar um ar de exagero) quando filma Hollywood. Afleck ainda é perfeito na hora de criar tensão, construindo sequências de suspense muito competentes, como a do clímax, embora nessa ele seja levemente infeliz ao incluir diversos momentos em que os personagens se safam por pouco, o que parece meio repetitivo e forçado. Mas isso não chega a depreciar o longa.

  O único erro grave, no entanto, é em relação ao protagonista. Não exatamente à atuação de Afleck (embora eu ache que Matt Damon seria mais adequado ao papel). O cineasta reconhece suas limitações como ator, e trabalha, em seus filmes, com papéis que sabe que atuará com conforto. O problema é que ele é completamente unidimensional. Afleck chega até a incluir uma subtrama envolvendo a família desestruturada dele, para deixá-lo um pouco mais profundo. Mas isso não adianta nada, é completa perda de tempo, e não se inclui de maneira alguma ao contexto do filme, muito menos cria um arco dramático para o personagem. Pior de tudo é que, justamente pela unidimensionalidade dele, seus sacrifícios no terceiro ato são totalmente incompreensíveis. Quem se dá bem no elenco é mesmo Alan Arkin (oscarizado por Pequena Miss Sunshine) e Bryan Cranston (o Walter White de Breaking Bad). Alan Arkin transforma o cineasta Lester Siegel em uma figura interessantíssima e complexa, irônica ao extremo. Já Bryan Cranston, que é tão genial quando interpreta Walter White no seriado que citei, nunca parece ter um bom personagem no Cinema, e esse ano mesmo tive que criticar suas atuações no legalzinho O Vingador do Futuro e no abominável Rock of Ages. Mas aqui, seu Jack O’Donnell é um sujeito complexo que, em determinado momento, mostra que é bem mais humano do que aparentava. John Goodman e Kyle Chandler ainda estão bem divertidos em seus papéis, mas não há muito o que falar.

  Contando com falas inspiradas e inteligentes, além de muitas vezes engraçadas (“Se vou fazer um filme falso, vai ser um sucesso falso”), Argo é um filme realmente ótimo, inteligente e complexo, que prova cada vez mais que Ben Afleck é um cineasta excepcional e ambicioso, pronto para se juntar a Sean Penn e Selton Mello no ramo de atores que viraram grandes diretores (gostaria de dizer que Clint Eastwood é também, mas a qualidade de seus filmes caiu demais de 2008 para cá, então deixa pra lá).

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