Análise:
Clown (Clown / 2014/ EUA, Canadá) dir. Jon Watts
por
Lucas Wagner
Clown
consegue
a façanha de ser profundamente perturbador ao mobilizar o espectador de formas
divergentes enquanto lentamente o arrasta para uma história que, mais do que
apenas geradora de sustos, apavora até a espinha. Além de, é claro, servir de
mais argumentos para que eu possa afirmar que palhaços não são nada legais...
Baseado em um trailer
falso feito apenas de “brincadeira” em 2010, o roteiro de Christopher D. Ford e
do, também diretor do longa, Jon Watts, Clown
conta a história de um pai, Kent McCoy (Andy Powers), que, no desespero
para arrancar sorrisos do filho em seu aniversário, se veste com uma antiga
fantasia de palhaço encontrada em um baú no porão de uma antiga casa. O
problema é que a fantasia é amaldiçoada, possuindo seu usuário com um espírito
de um antigo demônio...
Interessante que o
filme consiga um equilíbrio entre um tom farsesco e outro mais denso, sério. Os
temas cartunescos trazidos pela trilha instrumental de Matthew Veligdan
ratificam essa dubiedade, e o retrato de “família excessivamente feliz” que os
realizadores pintam dos McCoy no início consegue o duplo efeito de soar falso e
explicitar um carinho intra-familiar que será importante para que os eventos
posteriores na narrativas alcancem relevância dramática. E, mesmo com esse retrato,
que pode parecer afastar aqueles personagens do “mundo real”, é notável que
estes se comportem como figuras racionais, com dificuldades naturais na
aceitação de uma situação tão absurda como a que acabam envolvidos, o que
corrobora para um clima de tensão advindo de própria agonia de ver pessoas
comuns “dando murro em ponta de faca” em um contexto onde a lógica não se
aplica.
Logo, percebe-se que
uma das coisas mais perturbadoras em Clown
diz respeito à própria dificuldade que o espectador pode encontrar para se
mobilizar quanto ao que está assistindo: o filme se trata de uma bobagem que
finge se levar a sério ou de uma história de horror que flerta com o drama
familiar e brinca de ser besta? Tal indefinição só pode resultar em um efeito
incômodo eficaz para uma obra desse tipo. As duas abordagens são usadas pelos
realizadores, que inclusive sabem utilizar-se de meios visuais para validar
ainda mais essa dificuldade. O diretor de fotografia, Matthew Santo, faz um bom
uso das locações afetadas pelo inverno para aproveitar para adotar uma paleta
de cores baseada no cinza que atribui um tom melancólico que não corresponde
com eventos tão bobos do início da trama e nem com os citados tons farsescos
que esta inicialmente assume. Ainda, os ligeiros créditos iniciais reforçam a
ambiguidade ao mostrar imagens rápidas de crianças sorrindo e brincando, além
do título em fontes coloridas, que pulam entre si em cortes bruscos/secos que
incomodam. Ainda tecnicamente, Clown
possui um primoroso trabalho de maquiagem na transformação do amoroso e feliz
Kent no aterrorizante palhaço demoníaco, enquanto o figurino merece aplausos
nos estágios da degradante fantasia, que aos poucos começa a parecer uma
verdadeira pele, com detalhe para os abdominais que ganham contornos nítidos
com a progressão da possessão.
Porém, o mais
interessante é que o filme consiga aos poucos puxar o espectador para uma mobilização
séria, esvanecendo o incômodo advindo da indefinição do “estilo” do longa para
uma angústia que tem como causa a própria narrativa, a começar pela
aterrorizante transformação a lá A Mosca que
Kent vai sofrendo. E, ao se preocupar em validar o drama humano vivido mesmo em
meio àquela bizarrice toda, os realizadores permitem que o projeto ganhe
relevância emocional, sendo consequentemente mais assustador, e assim, ver um
cara amoroso como Kent ir gradualmente se transformando em uma criatura
“instintual” assassina, consciente do processo e sem poder evitá-lo, é doloroso,
ainda mais pela doce performance de Andy Powers (e vale ressaltar que Eli Roth,
que assume o papel do palhaço nos estágios mais avançados da possessão,
aterroriza com seu tom de voz calmo, lento, grave e frio). Mas é Laura Allen
que galga degraus para se tornar a verdadeira protagonista do filme,
conseguindo evidenciar sentimentos profundos de culpa, amor, proteção e
confusão na sua composição de Meg McCoy, que se vê posta a provas ainda mais
angustiantes do que o próprio Kent, já que ela ainda mantém o controle de si e,
mais do que isso, se vê responsável pela proteção da família por um ser que é e
não é de sua família.
Usando a violência
gráfica não exagerada o suficiente para servir apenas como gore, mas equilibrada em
sua expressividade para funcionar como demonstração da seriedade da situação,
além de gradual em suas exposições (algo coerente com a estratégia narrativa
comentada no parágrafo anterior), Clown ainda
aposta na afronta a elementos culturais para se tornar mais aterrorizante.
Quando demoniza de uma maneira intensa e fisicamente grotesca a figura “divertida”
do palhaço, os realizadores encontram uma forma (clássica, é verdade) de
incomodar no nível básico do inocente sendo corroído pela maldade, uma situação
já extensivamente explorada pelo Horror (vide o romance It, de Stephen King, ou o filme The
Babadook) mas aqui exacerbada pela comentada progressão de seriedade da
obra, que promove a sensação de um mergulho gradual nas trevas, e também porque
Kent é uma pessoa muito “legal” para ser acometido por tamanha desgraça, sendo
que o mesmo pode ser dito pela agonia de ver uma família tão harmoniosa sendo
despedaçada daquela forma. Além disso (ah, sim, quem não viu o filme, pule pro
próximo parágrafo), ao lidar ostensivamente (inclusive por meio visual) com
assassinatos de crianças, o filme atinge até mesmo o mais insensível dos
espectadores.
Funcionando como um
curioso exercício narrativo nessa empreitada de jogar com a mobilização
racional e emocional do espectador, Clown
acaba derrapando um pouco ao apostar em alguns desgastados clichês no
terceiro ato, mas possui atrativos o suficiente, além de ser genuinamente
assustador, para merecer créditos.
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