Crítica:
Vício Inerente
(Inherent
Vice / 2015 / EUA) dir. Paul Thomas Anderson
por
Lucas Wagner
Quem lê ou assiste Vício Inerente procurando algo meramente
parecido com “coerência” pode se
sentir irritado, já que esse provavelmente é o critério errado para apreciar
tanto o romance de Thomas Pynchon quanto esta adaptação roteirizada e dirigida
por Paul Thomas Anderson. Se, no entanto, o espectador se deixar levar pela vibe do projeto, pode acabar se
divertindo, pois, mais do que funcionar como narrativa de mistério ou estudo de
personagens, a obra busca captar a atmosfera cultural dos EUA nas décadas de
60/70, o que, inevitavelmente, o leva a se transformar num exercício de
aleatoriedade.
A trama tem início
quando o detetive particular Doc Sportello (Joaquin Phoenix) recebe a visita de
sua ex-namorada Shasta Fay Hepworth (Katherine Waterstone), com um pedido de
ajuda quanto a um esquema de conspiração e crime que ela se viu envolvida com o
novo namorado e a esposa deste. A investigação, no entanto, leva Doc a
encontros com figuras bizarras e redes de crimes mais profundas do que
esperava.
Vício
Inerente tem uma estrutura típica de um noir, além de elementos característicos do gênero. Se a investigação
de Doc começa como algo relativamente simples, aos poucos se descortina conexões
bizarras e complexas contingências que revelam uma conspiração muito mais
profunda do que inicialmente se acreditava, com policiais corruptos e grandes
figuras milionárias envolvidas, os diferentes casos mostrando uma ligação essencial,
e todas as pessoas parecendo ter duas caras. A figura da femme fatale, essencial em qualquer noir, a propósito, funciona como grande motor para o protagonista,
e Shasta é um exemplo impecável, com Katherine Waterstone emprestando à
personagem um caráter sedutor e sombrio, mas com camadas de melancolia e
fragilidade que podem ser sinceras ou apenas meios de manipulação psicológica.
No entanto, no fim das
contas, a intrincada trama simplesmente não faz sentido, e cabe na metáfora da
sopa, onde o enredo engrossa mas em nada acrescenta ao projeto como um todo. As
coincidências entre os casos soam rasas e até mesmo forçadas, as justificativas
por trás dos objetivos e das ações pouco convencem, personagens desaparecem rapidamente
sem dizer a que vieram enquanto outros aparecem demais sem ter uma ligação explícita
com o fio principal da história, assim como diversas pontas ficam soltas no
final, sem falar em elementos que são jogados na narrativa como aparentemente
importantes e depois são deixados de lado. Pode parecer uma crítica negativa,
mas passa longe disso. É esse nonsense o
ingrediente secreto de Vício Inerente.
É como se realmente acompanhássemos uma história difícil através dos olhos e
ouvidos de um cara que, sempre que possível, está fumando um baseado, inalando
gases anestésicos ou usando algum outro tipo de entorpecente. Todas as ligações,
contingências e coincidências da obra parecem fruto de pura paranóia, e o fato
de que não só Doc mas todos os personagens se comportam do mesmo jeito,
alicerçam o longa numa atmosfera geral de fritação.
Paul Thomas Anderson
reconhece isso e estrutura sua direção nesse sentido. A montagem com fusões
lentas, as cenas em slow-motion com a
narração “astrológica” (sério) ao fundo, os longos planos abertos com lentos closes e os igualmente arrastados travellings traduzem a sensação de
letargia típica da maconha, que corrobora com diálogos literais do romance que
hora parecem simplesmente desorientados e outras vezes trazem insights poéticos que ocasionalmente
revelam perspicazes digressões filosóficas. Ainda, é curioso como alguns
personagens (mais especificamente Coy Harlingen e Shasta Fay) ganham um aspecto
alucinatório em suas aparições e desaparições inesperadas, sem que sua
veracidade seja questionada por Doc, já que é um sujeito por demais acostumado
com delírios e alucinações (genial o momento em que escreve um alerta de “Paranóia”
em seu bloco de anotações quando conversa com um cliente). E por mais que
Anderson se entregue à diversão de sequências desvairadas e hilárias como aquela
envolvendo Doc, o dentista e Japonica Fenway, ele ainda mostra-se sensível o suficiente
para conferir o ar de devaneio tristonho aos episódios de recordações de Doc
sobre Shesta, em especial aqueles em que o diretor usa ao fundo Harvest e Journey Through The Past, duas das mais melancólicas canções de
Neil Young, sendo belo como essa última perdura durante um bom tempo quando
pára de tocar no flashback como
trilha sonora e continua como som diegético (origem no ambiente) na linha
narrativa principal através de rádios, como se fossem fantasmas da memória de
Doc influenciando o presente.
Traduzindo bem a desorientação
filosófica e cultural desse período histórico, Vício Inerente explicita inarticulações ideológicas de forma sempre
dinâmica e descontraída, e aqui, negros e arianos são capazes de deixar aspectos
basais de sua rixa histórica para se juntarem ao encontrar “algumas visões em
comum sobre o governo do país”, e o hater
de hippies “Big Foot” Bjorsen
(Josh Brolin) tem sua primeira aparição em cena como um hippie num comercial de imóveis. Falando nesse personagem, um brutamontes
que age como manda-chuva, é sintomático como em certo momento fica explícita
sua submissão à esposa, que aparenta ser a verdadeira “chefe da casa” num
momento histórico onde as definições de papéis de gênero vinham mudando. O
filme respira contracultura de uma forma descontraída, cool, e o próprio ambiente dos personagens parece derretido em suas
bases, incoerente, e basta observar como Doc usa um consultório médico alugado
para atender seus casos, num uso unicamente funcional do estabelecimento sem considerar
as consequências imagéticas que isso pode ter. O tema do filme é o seu momento
histórico, um momento de transições ideológicas onde nada ainda parece
concretizado o suficiente para fazer o mínimo de sentido. É como se a própria
época parecesse uma lombra, indefinida e ondulada em suas percepções incoerentes
e impalpáveis. Daí a essencial falta de coerência do projeto. Esse é o seu
núcleo.
Numa das melhores
sequências do filme, com o caráter de devaneio que percorre diversos momentos
da projeção, vemos uma replicação da Santa Ceia com Coy Harlingen (Owen Wilson)
no centro e hippies ao redor, enquanto comem pizza. É uma representação que
resume o filme: com descontração, explora a atmosfera daquela cultura permeada
por drogas, trocando o sagrado clássico pelo hedonismo do nonsense.