Análise:
O Homem Mais Procurado (The Most Wanted Man / 2014 / Reino Unido, Alemanha, EUA) dir. Anton
Corbijin
por
Lucas Wagner
-No
fim, todas essas vidas perdidas, todos os cômodos vazios... tem um propósito?
Você já se fez essa pergunta?
-Já.
Mas acabo chegando sempre na mesma resposta.
-E
qual é?
-Fazer
do mundo um lugar melhor.
O fato de tal resposta,
parafraseada de um diálogo deste O Homem
Mais Procurado, ser tão pouco convincente faz perfeito sentido dentro da carreira
literária de John Le Carré, quem escreveu o romance de onde esse filme é
adaptado. Com dezenas de livros em seu currículo, a grande preocupação do
escritor sempre girou em torno de um minucioso estudo do que verdadeiramente constitui
a vida de um espião, descartando o falso
glamour da profissão e mostrando-a em cores menos charmosas, com indivíduos
sufocados por uma existência marginal de si mesmos, obrigados a viver sob concessões
e um constante estresse ligado ao perigo sempre iminente, a ambiguidade de suas
relações e uma onipresente burocracia, característica de qualquer orgão governamental.
O roteiro de Andrew
Bovell, dirigido por Anton Corbijin, tem a trama embasada no aparecimento de
Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin) em Hamburgo, um imigrante ilegal de origem
chechena e muçulmana, provindo da Rússia, que causa alvoroço nos escritórios da
Inteligência alemã e norte-americana, em especial pelo fato dessa chegada, e
sua ligação com uma misteriosa conta bancária, balançarem complexas redes de operações
secretas já há muito montadas. Nesse contexto, o espião Gunther Bachman (Philip
Seymour Hoffman) organiza seus contatos e informantes para manipular o jogo e conseqüências
desencadeados por tal chegada, ao mesmo tempo em que sobrevive ao seu próprio
meio.
Gunther que, aliás, é
perfeito exemplo de um protagonista criado por Le Carré, já que divide
características basais com figuras como Leamas ou George Smiley, apresentando
uma competência ímpar no seu trabalho, alinhavada por um cinismo e certo senso
de humor (no caso de Leamas, maldoso), além de gentileza, que mascaram o que na
verdade é uma existência profundamente depressiva. Pessoalmente, ao ver o rosto
de Hoffman ao longo do filme constantemente lembrei-me de uma passagem do
romance Por Quem os Sinos Dobram,
onde Hemingway descreve o rosto de um personagem como sendo “modelado com resto
de material coletado sob as garras de um leão velho”. E não é para menos, pois
toda a performance desse genial ator compreende em explorar um homem cuja
superfície já apresenta fissuras de um terremoto interior que, se ainda não o
impede de fazer seu trabalho, é suficiente para expressar-se em constantes
cigarros e um óbvio alcoolismo, além de uma voz grossa e profundamente rouca,
arrastada, como se falar já tivesse se tornado um ato que exige esforço, assim
como qualquer relação sua travada com o mundo exterior.
É intrigante ainda que
Hoffman insira diversos momentos de silêncio contemplativo entre as mais
íntimas falas de seu personagem, deixando que a inarticulação de seus
sentimentos digam muito mais sobre a dimensão de seu sofrimento do que as
palavras poderiam fazê-lo. Um sofrimento que tem origem em diversas variáveis,
desde um histórico de culpa, a solidão e embates constantes e estressantes com
colegas de trabalho, a burocracia inerente à espionagem e ainda a própria confusão
desorganizada de sua profissão (algo refletido pelo design de produção de seu escritório), mas, mais além disso, é um
sofrimento próprio de um homem que talvez já conheça demais da vida que leva para
se entregar a alguma espécie de otimismo ou ainda mesmo a certa ignorância que
pode vir como benção para realizar seu trabalho, já que, justamente por ser um
sujeito crítico e inteligente, Gunther é capaz de enxergar pontos de vista
diversos e como eles se constituem em seus próprios sentidos (até mesmo quando
se trata de terrorismo), o que o incapacita a uma aderência cega a seus
objetivos e às ideologias de seu meio.
O que, se por um lado é
uma cruz, por outro é um dos fatores que o levam a ser tão competente em sua
área, já que o torna um homem mais capaz de assumir posturas diversas para
convencer seus informantes a agirem de acordo com suas necessidades, mesmo que
essa atitude já exija um esforço por parte do protagonista. E um dos grandes
prazeres em assistir o filme consiste em enxergar esse jogo de manipulação,
sendo intrigante o processo de despersonalização pelo qual passam figuras
fortes e imponentes como Annabel Richter e Tommy Brue (respectivamente, Rachel
McAdams e Willem Dafoe, ambos excelentes) sob a pressão de suas obrigações enquanto
informantes envolvidos em um jogo de informações.
Mas O Homem Mais Procurado se torna um
exercício ainda mais fascinante ao se mostrar uma obra madura nos termos
políticos, demonstrando uma compreensão dos delicados fios que sustentam a complexa
rede que é a política internacional, tendo que se equilibrar em termos de
efetividade e imagem, sendo a própria agência de Inteligência uma ferramenta
suja porém necessária para que esse equilíbrio seja (parcamente) sustentado. Dentre
outros aspectos, isso se evidencia plenamente na ambiguidade da atitude
envolvendo a caçada a Abdullah (Homayoun Ershadi), além do fato de que o filme
ganha em complexidade e maturidade humanas por nos aproximar do personagem de
Karpov, tornando-o um indivíduo tridimensional em sua dor, permitindo que o
compreendamos o suficiente para ter uma ideia do grau de frieza exigida pelo
serviço de espionagem ao lidar com seus “meios para fins”. Além disso, o longa
demonstra, assim como outras adaptações e romances de Le Carré, como o meio da
espionagem é escorregadio, sendo qualquer um, qualquer um, um possível inimigo ou, na melhor das expectativas, um
elemento a ser descartado quando não mais precisado.
Mesmo que não tão visualmente
evocativo ou mesmo complexo como O Espião
Que Sabia Demais (adaptação anterior de um romance de Le Carré), O Homem Mais Procurado é uma obra tensa
em sutilizas, funcionando como um estudo de personagem e de universo
extremamente eficaz, e uma despedida digna de um dos melhores atores que já
passou por esse planeta.
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