quinta-feira, 26 de junho de 2014


Análise:

A Culpa é das Estrelas (The Fault in Our Stars / 2014 / EUA) dir. Josh Boone

por Lucas Wagner

A Culpa é das Estrelas irrita em diversos aspectos, entre eles: a trilha sonora pop melosa; o uso de recursos óbvios como momentos felizes em épocas quentes do ano e tragédias em períodos frios; a aparição surpresa e inútil de um certo indivíduo em um enterro; um momento P.S: Eu Te Amo; falas de auto-ajuda lamentáveis (“Você não pode escolher não se machucar, mas pode escolher com quem vai se machucar”, o que é uma mentira açucarada); uma dispensável narração em off; e vários outros clichês e bobagens. Porém, essa adaptação do romance de John Green (que não li), que narra o amor entre dois jovens acometidos de câncer, é um filme comovente com uma mensagem valiosa e personagens ricos, interessantes e cativantes.

Caracterização essa que começa com a protagonista Hazel. Sofrendo com sua doença desde os 13 anos, a garota se fechou para uma vida “normal” de adolescente, preferindo a companhia de livros a de pessoas, e aceitando com resignação a perspectiva de uma morte iminente enquanto ainda é jovem. Apesar disso, a moça não é amarga, mas doce e amorosa com aqueles ao seu redor, inclusive se entregando ao humor (bem ácido, é verdade), e reconhecendo o esforço de seus pais, procurando não ser injusta com o cuidado preocupado que recebe deles. Se tem alguém a quem ela é mais restritiva é consigo mesma, pois não parece permitir alguma luz de esperança, e tenta encontrar, em sua condição, a aceitação da incompletude natural da vida. Isso até Gus aparecer em sua vida, o que, quando acontece, impele a garota a reavaliar suas crenças para permitir um pouquinho de luz em sua doce escuridão particular.

E falar de Hazel sem exaltar a performance da sempre encantadora Shailene Woodley é impossível, já que a atriz mas uma vez consegue criar uma figura meiga que tenta impedir que seus demônios interiores afetem/incomodem aqueles que conquistam seu afeto, como fez no belo e infelizmente ignorado The Spetacular Now. Com risadinhas juvenis de expectativa que revelam a alegria da personagem por estar vivendo algo até então inédito, a atriz consegue dizer muito sobre Hazel em detalhes como a hesitação ao pegar sua mochila com o aparelho respiratório depois de uma conversa no celular com Gus, como que relutando em voltar à sua condição. Além disso, Woodley consegue permitir que percebamos certo amadurecimento da personagem ao longo da projeção, ao mesmo tempo em que a maior densidade emocional de seu trabalho fica clara sem que ela perca a meiguice.

E não só Woodley merece elogios, já que a atuação de Ansel Elgort como Gus é igualmente fascinante. Com um auto-astral e um sorriso constante, Elgort já nos diz quem é Gus e como encara sua vida: não se deixando abater pelo câncer. Decidido a deixar marcas e viver plenamente, o rapaz apresenta um apego tocante às metáforas (a do cigarro é particularmente bonita), o que já é um sintoma de uma existência que se apega mais ao impalpável, uma característica cabível em uma vida que está destinada a findar-se jovem. E mesmo a animação e esforço de ser querido e deixar marcas na vida das pessoas revela uma comovente insegurança quanto ao próprio valor que possivelmente poderia criar em tão pouco tempo. O que não torna menos válidos seus sentimentos, e o fascínio que demonstra por Hazel jamais parece forçado, enquanto Elbert ainda demonstra ser um excelente profissional ao incluir detalhes que humanizam Gus, como, andando perfeitamente mesmo tendo uma perna artificial, apenas mancar quando aflito, como se nesses momentos tirasse a atenção da imagem que tenta passar. Aliás, justamente por seu otimismo constante e amor à vida é que é tão perturbador ver o personagem se desesperar ou mesmo se sentir inseguro.

Elogios também podem ser destinados aos pais de Hazel, que, como em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, se revelam elementos de força e carinho, cujas preocupações nunca soam exacerbadas, mas sim perfeitamente naturais e frutos de um cuidado valioso e necessário. Isso fica demonstrado bem na mãe interpretada por Laura Dern (estava com saudade dela, mesmo depois de seu pequeno papel em O Mestre) como uma mulher que ao som de qualquer suspiro da filha aparece correndo preocupada, mas que faz de tudo para que a filha leve uma vida o mais “normal” possível, inclusive fazendo piada envolvendo drogas, festas e sexo. Acima de tudo, ela respeita Hazel e sua privacidade, não sendo mesquinha ao, por exemplo, negar que esta dirija sozinha em um momento de grande tristeza, e ainda apresenta humor ao brincar com suas próprias preocupações (depois de sair correndo do banho quando a filha a chamou em voz baixa, ela diz: “ah eu estava só tomando banho, nada demais”). O pai interpretado por Sam Tremmell assume muitas dessas características e ainda evita o estereótipo exacerbado de sogro malvado, e quando “menospreza” Gus é claramente como brincadeira, já que ele não deixa de se preocupar com o bem-estar da filha ou do rapaz.

Com um design de produção competente, A Culpa é das Estrelas consegue emular bem as personalidades de seus personagens pelos seus ambientes, como fica evidente nos elementos do quarto de Gus, que variam de pôsteres de V de Vingança até jogos de tiro unidimensionais. Já o quarto de Hazel é belo pelo tom azul (blues = tristeza) levemente esverdeado como uma lembrança constante da morte (o verde muitas vezes remete à putrefação), ao mesmo tempo em que a árvore encantada desenhada na parede emula a sensação de contos de fadas que ainda persiste no íntimo da garota, lembrado ainda pela iluminação que remete à estrelas no topo de sua cama. Já no que diz respeito à casa do escritor interpretado por Willem Dafoe, o design falha no exagero farsesco dos livros e papeis jogados para todos os cantos.

O figurino é bem eficaz ao manter o código de azul nas roupas de Hazel, variando para tons mais claros dessa cor em momentos mais alegres (como no vestido que usa no jantar do hotel ou na camiseta com que visita o escritor), enquanto é belíssimo o detalhe de Gus usar uma camisa azul clara por baixo do terno quando a leva para jantar, contrariando suas cores vivas e alegres básicas para entrar no mundo docemente melancólico da garota. A mudança do azul para o vermelho em Hazel, em determinado momento, também é sábio para retratar a atmosfera e sentimento de paixão, e nem mesmo a blusa marrom que a protagonista não raro usa por cima de uma indumentária azul vem sem razão, mas representa sua dificuldade em se abrir para os outros, enquanto a camiseta da banda Pink Floyd reforça ideias sobre o tom filosófico e triste da personagem. No âmbito técnico ainda, os balões de conversa pelo celular entre os personagens principais é eficiente não apenas pela maior dinâmica narrativa, mas ainda por vir desenhados e explodindo como bolhas de sabão, remetendo acertadamente aos desenhos sonhadores de garotas adolescentes em seus cadernos, ao mesmo tempo em que a efemeridade representado pelas suas pequenas explosões casam com a efemeridade de Hazel.

E, se a mensagem do filme não é exatamente original, também não deixa de ser bonita e valiosa, ainda mais por ser bem retratada. Os realizadores parecem tentar reforçar que não se deve limitar uma vida à suas limitações, mas viver eternidades dentro das possibilidades. Isso fica muito bem demonstrado no encontro de Hazel e Gus com o escritor Van Houten: a protagonista vê no seu “ídolo” a amargura que um dia poderia acometa-la ao insistir em se privar dos desejos; e é bacana que o escritor esteja usando uma camisa azul surrada por baixo de roupas mais escuras. A sequência seguinte, que mostra Hazel lutando contra escadas para visitar a casa de Anne Frank, é admirável primeiro pelo ambiente e seu valor simbólico (ressaltado com a narração em off de Frank) e segundo pela catarse que a protagonista encontra. Assim, o terceiro ato tem a força que pede e não parece implorar por lágrimas, já que essas vem naturalmente de nosso afeto pelos personagens e confiança na capacidade de Hazel de conquistar esperança mesmo em situações tão adversas.

Durante toda a projeção me lembrei de algo que uma pessoa certa vez me disse: “A vida que existe entre possivelmente pisar em falso e mesmo assim continuar caminhando é assustadora”. De fato, é muito assustadora, e sobressair-se ao medo é sinal de inegável valentia. Por isso que, mesmo com seus defeitos, A Culpa é das Estrelas é um belo filme, cativante como seus personagens.

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