Análise:
A Culpa é das Estrelas (The Fault in Our Stars / 2014 / EUA) dir. Josh Boone
por
Lucas Wagner
A
Culpa é das Estrelas irrita em diversos aspectos, entre eles:
a trilha sonora pop melosa; o uso de recursos óbvios como momentos felizes em
épocas quentes do ano e tragédias em períodos frios; a aparição surpresa e
inútil de um certo indivíduo em um enterro; um momento P.S: Eu Te Amo; falas de auto-ajuda lamentáveis (“Você não pode
escolher não se machucar, mas pode escolher com quem vai se machucar”, o que é
uma mentira açucarada); uma dispensável narração em off; e vários outros clichês e bobagens. Porém, essa adaptação do
romance de John Green (que não li), que narra o amor entre dois jovens
acometidos de câncer, é um filme comovente com uma mensagem valiosa e
personagens ricos, interessantes e cativantes.
Caracterização essa que
começa com a protagonista Hazel. Sofrendo com sua doença desde os 13 anos, a
garota se fechou para uma vida “normal” de adolescente, preferindo a companhia
de livros a de pessoas, e aceitando com resignação a perspectiva de uma morte
iminente enquanto ainda é jovem. Apesar disso, a moça não é amarga, mas doce e
amorosa com aqueles ao seu redor, inclusive se entregando ao humor (bem ácido,
é verdade), e reconhecendo o esforço de seus pais, procurando não ser injusta com
o cuidado preocupado que recebe deles. Se tem alguém a quem ela é mais
restritiva é consigo mesma, pois não parece permitir alguma luz de esperança, e
tenta encontrar, em sua condição, a aceitação da incompletude natural da vida.
Isso até Gus aparecer em sua vida, o que, quando acontece, impele a garota a
reavaliar suas crenças para permitir um pouquinho de luz em sua doce escuridão
particular.
E falar de Hazel sem
exaltar a performance da sempre encantadora Shailene Woodley é impossível, já
que a atriz mas uma vez consegue criar uma figura meiga que tenta impedir que
seus demônios interiores afetem/incomodem aqueles que conquistam seu afeto,
como fez no belo e infelizmente ignorado The Spetacular Now. Com risadinhas juvenis de expectativa que revelam a alegria
da personagem por estar vivendo algo até então inédito, a atriz consegue dizer
muito sobre Hazel em detalhes como a hesitação ao pegar sua mochila com o
aparelho respiratório depois de uma conversa no celular com Gus, como que
relutando em voltar à sua condição. Além disso, Woodley consegue permitir que
percebamos certo amadurecimento da personagem ao longo da projeção, ao mesmo
tempo em que a maior densidade emocional de seu trabalho fica clara sem que ela
perca a meiguice.
E não só Woodley merece
elogios, já que a atuação de Ansel Elgort como Gus é igualmente fascinante. Com
um auto-astral e um sorriso constante, Elgort já nos diz quem é Gus e como
encara sua vida: não se deixando abater pelo câncer. Decidido a deixar marcas e
viver plenamente, o rapaz apresenta um apego tocante às metáforas (a do cigarro
é particularmente bonita), o que já é um sintoma de uma existência que se apega
mais ao impalpável, uma característica cabível em uma vida que está destinada a
findar-se jovem. E mesmo a animação e esforço de ser querido e deixar marcas na
vida das pessoas revela uma comovente insegurança quanto ao próprio valor que
possivelmente poderia criar em tão pouco tempo. O que não torna menos válidos
seus sentimentos, e o fascínio que demonstra por Hazel jamais parece forçado, enquanto Elbert ainda demonstra ser um excelente profissional ao incluir detalhes que
humanizam Gus, como, andando perfeitamente mesmo tendo uma perna artificial,
apenas mancar quando aflito, como se nesses momentos tirasse a atenção da
imagem que tenta passar. Aliás, justamente por seu otimismo constante e amor à
vida é que é tão perturbador ver o personagem se desesperar ou mesmo se sentir
inseguro.
Elogios também podem
ser destinados aos pais de Hazel, que, como em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, se revelam elementos de força e
carinho, cujas preocupações nunca soam exacerbadas, mas sim perfeitamente
naturais e frutos de um cuidado valioso e necessário. Isso fica demonstrado bem
na mãe interpretada por Laura Dern (estava com saudade dela, mesmo depois de
seu pequeno papel em O Mestre) como
uma mulher que ao som de qualquer suspiro da filha aparece correndo preocupada,
mas que faz de tudo para que a filha leve uma vida o mais “normal” possível,
inclusive fazendo piada envolvendo drogas, festas e sexo. Acima de tudo, ela
respeita Hazel e sua privacidade, não sendo mesquinha ao, por exemplo, negar
que esta dirija sozinha em um momento de grande tristeza, e ainda apresenta
humor ao brincar com suas próprias preocupações (depois de sair correndo do
banho quando a filha a chamou em voz baixa, ela diz: “ah eu estava só tomando
banho, nada demais”). O pai interpretado por Sam Tremmell assume muitas dessas
características e ainda evita o estereótipo exacerbado de sogro malvado, e
quando “menospreza” Gus é claramente como brincadeira, já que ele não deixa de
se preocupar com o bem-estar da filha ou do rapaz.
Com um design de produção competente, A Culpa é das Estrelas consegue emular
bem as personalidades de seus personagens pelos seus ambientes, como fica
evidente nos elementos do quarto de Gus, que variam de pôsteres de V de Vingança até jogos de tiro
unidimensionais. Já o quarto de Hazel é belo pelo tom azul (blues = tristeza) levemente esverdeado
como uma lembrança constante da morte (o verde muitas vezes remete à
putrefação), ao mesmo tempo em que a árvore encantada desenhada na parede emula
a sensação de contos de fadas que ainda persiste no íntimo da garota, lembrado
ainda pela iluminação que remete à estrelas no topo de sua cama. Já no que diz
respeito à casa do escritor interpretado por Willem Dafoe, o design falha no exagero farsesco dos
livros e papeis jogados para todos os cantos.
O figurino é bem eficaz
ao manter o código de azul nas roupas de Hazel, variando para tons mais claros
dessa cor em momentos mais alegres (como no vestido que usa no jantar do hotel
ou na camiseta com que visita o escritor), enquanto é belíssimo o detalhe de
Gus usar uma camisa azul clara por baixo do terno quando a leva para jantar,
contrariando suas cores vivas e alegres básicas para entrar no mundo docemente
melancólico da garota. A mudança do azul para o vermelho em Hazel, em
determinado momento, também é sábio para retratar a atmosfera e sentimento de
paixão, e nem mesmo a blusa marrom que a protagonista não raro usa por cima de
uma indumentária azul vem sem razão, mas representa sua dificuldade em se abrir
para os outros, enquanto a camiseta da banda Pink Floyd reforça ideias sobre o
tom filosófico e triste da personagem. No âmbito técnico ainda, os balões de
conversa pelo celular entre os personagens principais é eficiente não apenas
pela maior dinâmica narrativa, mas ainda por vir desenhados e explodindo como
bolhas de sabão, remetendo acertadamente aos desenhos sonhadores de garotas
adolescentes em seus cadernos, ao mesmo tempo em que a efemeridade representado
pelas suas pequenas explosões casam com a efemeridade de Hazel.
E, se a mensagem do
filme não é exatamente original, também não deixa de ser bonita e valiosa,
ainda mais por ser bem retratada. Os realizadores parecem tentar reforçar que
não se deve limitar uma vida à suas limitações, mas viver eternidades dentro
das possibilidades. Isso fica muito bem demonstrado no encontro de Hazel e Gus
com o escritor Van Houten: a protagonista vê no seu “ídolo” a amargura que um
dia poderia acometa-la ao insistir em se privar dos desejos; e é bacana que o
escritor esteja usando uma camisa azul surrada por baixo de roupas mais
escuras. A sequência seguinte, que mostra Hazel lutando contra escadas para
visitar a casa de Anne Frank, é admirável primeiro pelo ambiente e seu valor
simbólico (ressaltado com a narração em off
de Frank) e segundo pela catarse que a protagonista encontra. Assim, o terceiro
ato tem a força que pede e não parece implorar por lágrimas, já que essas vem
naturalmente de nosso afeto pelos personagens e confiança na capacidade de
Hazel de conquistar esperança mesmo em situações tão adversas.
Durante toda a projeção
me lembrei de algo que uma pessoa certa vez me disse:
“A vida que existe entre possivelmente pisar em falso e mesmo assim continuar
caminhando é assustadora”. De fato, é muito assustadora, e sobressair-se ao
medo é sinal de inegável valentia. Por isso que, mesmo com seus defeitos, A Culpa é das Estrelas é um belo filme,
cativante como seus personagens.
Nenhum comentário:
Postar um comentário