Análise:
Praia do Futuro (Praia do Futuro / 2014 / Brasil, Alemanha) dir. Karim Aïnouz
por Lucas Wagner
Criar uma forte
interação com outra pessoa é algo extremamente complexo, já que passamos muita
de nossas inseguranças, frustrações, anseios, sonhos para outro alguém com
tantas confusões quanto nós mesmos. Visto que não raro não conseguimos nem
descrever nossas angústias com clareza suficiente, exigir que outra pessoa seja
capaz de compreender-nos realmente é muito frustrante. Às vezes há muito para
ser dito, mas nem sempre esse “muito” cabe em palavras. Essa sensação de
confusão intra e inter-pessoal, de sentimentos fortes guiando diversos
indivíduos e moldando suas confusas vidas, deixando tudo em suspensão e a
possibilidade de conforto parecendo uma fantasia juvenil permeia o tempo
inteiro Praia do Futuro, novo filme
de Karim Aïnouz.
Escrito por Aïnouz e Felipe Bragança, o longa conta a história do
bombeiro Donato (Wagner Moura), que falha na tentativa de salvar um homem que
se afoga na praia do futuro, em Fortaleza. Donato acaba criando, depois disso,
um envolvimento amoroso com o piloto de motocross
alemão Konrad (Clemens Schick), amigo do falecido, e eventualmente se muda
para a Alemanha com este, deixando sua família em Fortaleza.
Acertando
como Azul é a Cor Mais Quente e Hoje Eu Quero Voltar Sozinho ao não
tratar a homossexualidade dos personagens como algo estranho e digno de
discussões, mas sim como fruto de sentimentos mais que naturais, Praia do Futuro prefere começar focando
em certo estranhamento que surge entre Konrad e Donato depois de sua primeira
transa. No dia seguinte a uma noite de sexo intenso, os dois parecem não trocar
muitas palavras, e há até um certo desconforto quando estão próximos, ao mesmo
tempo em que parecem buscar a companhia um do outro, indo em lugares onde
existe a possibilidade de um encontro.
Depois de
todo esse silêncio, Aïnouz demonstra sua inteligência no belíssimo plano em que
os dois estão perto do mar em período de maré alta, sob o som forte de ondas
quebrando, e aí, em meio a todo esse barulho, Donato finalmente pergunta: “você
vai ir embora amanhã?”. O início de uma paixão sempre trás o medo do outro
sumir, um medo que se torna maior pelo anseio de que fazer uma pergunta que
demonstre que você se importa com a presença dessa pessoa possa ser, de algum
modo, inapropriado.
É notável
que, posteriormente, Aïnouz invista em uma cena um tanto similar, mas passada
em diferentes condições geográficas e psicológicas. Dessa vez na Alemanha,
vemos Konrad e Donato diminutos em um plano aberto que, agora sem o barulho das
ondas ou a agitação do mar, se passa em uma área aberta de um parque vazio,
cercado por árvores mortas de um inverno que teima em continuar. No silêncio
angustiante da cena parece que muito já foi dito entre o casal, mas esse muito
na verdade se revela pouco, pois a maioria das angústias e sentimentos de
inadequação gritados a plenos pulmões nunca foi externalizado. Donato quer ser
compreendido por Konrad e quer que esse lhe dê um rumo, algo injusto ainda mais
quando um rumo é apresentado e Donato, reconhecendo isso mas não conseguindo
calar seus próprios anseios, não se contenta e tenta ferir os sentimentos do
parceiro. Tal cena se torna ainda mais arrepiante quando uma tempestade de neve
começa a cair sobre o casal, num belo simbolismo.
Karim Aïnouz,
por sinal, continua sendo um colosso na hora de usar o ambiente e os estímulos
sensoriais provindos desse como forma de dizer muito de forma econômica,
poética e elegante, como eu comentei ao escrever sobre o seu O Abismo Prateado. Em Fortaleza, o mar
fica em constante evidência, como uma lembrança de sua importância para Donato
e também da tragédia do afogamento que redefiniu os rumos das vidas dos
personagens. A segunda cena que se passa em uma boate é também fascinante já
que, optando pelo abafamento do som cacofônico do ambiente e usando uma
belíssima trilha de cordas, o diretor alcança a proeza de conferir uma
atmosfera ao mesmo tempo melancólica e de liberdade, como se ao se entregarem à
dança pura e irracional, Konrad e Donato finalmente alcançassem uma espécie de
clareza na confusão de sua paixão, e não é a toa que a cor vermelha da boate
(cor da paixão e do perigo) divida espaço com flashes de uma luz branca, clara.
Ao mesmo
tempo em que alguns simbolismos visuais são mais óbvios (embora nem por isso
menos eficazes), como Donato dentro de um aquário gigante em meio a um edifício
cinzento, outras vezes os simbolismos são de uma sutileza apaixonante, como a
árvore morta cujos galhos se erguem sobre o casal principal como uma enorme
mão. Além disso, é interessante o minimalismo com que Aïnouz desenvolve os
conflitos centrais de Donato, como o desconforto que passa a sentir na
Alemanha, algo que o espectador percebe através de detalhes como o momento em
que Donato sai de perto de Konrad e sua amiga e os observa através de uma porta
de vidro (demonstrando seus sentimentos de inadequação e alienação), ou ainda
através da fotografia do mar em preto e branco que fica pregada em cima da cama
do casal, como que representando o passado como uma memória antiga e distante.
Aliás, a
direção de arte acerta ao preencher os ambientes de Donato com detalhes que
lembram o litoral, como estrelas-do-mar, conchas ou a citada fotografia,
demonstrando o apego do protagonista ao passado em meio à nova vida na
Alemanha, algo que se torna evidente também no seu trabalho no aquário ou ao
estar sempre nadando em uma piscina pública, além de, é claro, os momentos
intimistas do personagem ao fechar os olhos e dar um pequeno sorriso ao sentir
o sol no rosto, num detalhe impecável da performance de Wagner Moura, que aqui
investe numa atuação sutil e extremamente complexa cujo ápice é alcançado no
momento em que a frieza da falta de expressão facial quando escuta notícias
dolorosas é traída pela dor dos olhos vermelhos e molhados.
Praia do Futuro é, acima de
tudo, um filme triste como a vida, onde os sentimentos que tanto nos angustiam
em momento algum fazem sentido por completo, e a ambiguidade e força disso fica
bem evidente na linda cena em que uma briga física tem, simultaneamente, sinais
de um carinho intenso e irreprimível. Tanto Donato como Konrad ou Ayrton (irmão
do protagonista) tem suas vidas constantemente moldadas um pelo outro, e a
intensidade do que parecem sentir muitas vezes não podem ser expressas de forma
satisfatória pela fala, o que torna compreensível o silêncio e dificuldade de
expressão que fica evidente em Konrad durante a maior parte do tempo. Algumas
poucas falas, no entanto, surgem como construções inacabadas de algo muito mais
profundo, e a percepção de Ayrton ao dizer, fascinado, em certo momento, que
“então isso aqui é o meio do mar?”, é uma prova de um mundo de idéias e dores,
algo que vale também para a fala de Donato ao discutir os prejuízos do salitre
infiltrando em edifícios: “não dá para construir nada na praia do futuro”. Os
próprios nomes dos capítulos são irresistíveis em sua profundidade poética: “O
Abraço do Afogado”, “Um Herói Partido ao Meio” e “Um Fantasma Que Só Fala
Alemão”.
É interessante
que os momentos mais intimistas e bonitos do filme venham no silêncio do toque,
nos mistérios do contato físico e da percepção sensorial, uma espécie de
comunicação mais pura em sua falta de palavras. Nesse sentido, as citadas cenas
da boate e da briga colam perfeitamente com outras como a dança do casal
protagonista no apartamento da Alemanha ou mesmo o costume de Donato de, quando
está transando com o namorado, passar a mão no rosto do parceiro, buscando
senti-lo e explorá-lo, algo que se torna hábito de Konrad também.
Assim, ao
finalizar o filme sob o som da maravilhosa canção Heroes, de David Bowie, percebemos a amplitude da sabedoria de
Karim Aïnouz. Bowie canta sobre amantes que, pelo menos em um mísero trechinho
de sua existência fatalmente solitária, conseguem encontrar conforto um no
outro, combatendo inimigos que insistem em separá-los e sendo assim heróis, por
apenas um dia. Já Aïnouz mostra seus personagens desaparecendo sob uma densa
névoa, numa representação de um destino incerto; mas naquele momento, naquele
dia, eles estão bem...estão amparados um pelo outro.
-Outros
textos que escrevi de filmes dirigidos por Karim Aïnouz:
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