Análise:
Noé (Noah /
2014 / EUA) dir. Darren Aronofsky
por Lucas Wagner
Aviso: aconselho
que o texto a seguir seja lido apenas por quem viu o filme, já que dessa vez os
spoilers foram inevitáveis, até mesmo
para discutir a obra com propriedade.
O que filmes tão diferentes em suas premissas como π, Réquiem Para Um Sonho, Fonte da Vida, O Lutador e Cisne Negro tem
em comum não é apenas o mesmo diretor, Darren Aronofsky, mas no cerne uma temática
que aparentemente fascina tal realizador: o de seres humanos levados ao extremo
de seus limites físicos e psicológicos. Assim, não é surpresa que Noé, seu novo filme, volte a abordar
esse tipo de personagem, usando o brutal arco dramático pelo qual o
protagonista tem que passar para transformar esse longa não apenas uma leitura
moderna de uma fábula bastante conhecida, mas sim em uma exploração das
complexas implicações morais que tal fábula tem a oferecer.
E se uso a palavra “fábula” não é apenas para pirraçar
fundamentalistas religiosos, mas porque Aronofsky (que é ateu) e o
co-roteirista Ari Hendel abordam a história não com fidelidade absoluta à
bíblia, mas dão asas a suas imaginações e criam um universo mais nos moldes de
épicos como Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis. E isso a introdução
do filme já deixa bem claro, ao repassar a história da Criação chegando até o
momento em que Caim matou Abel dividindo a humanidade em duas partes: os descendentes
de Caim (uma espécie de Sauron), sempre maus, violentos e perversos; e os
descendentes de Set, mais escassos, mas bons e humildes servos do Criador.
O Noé interpretado por Russell Crowe é um dos últimos da
linhagem de Set, e recebeu a difícil missão de construir uma arca para salvar
os animais da grande inundação que o Criador lançará para limpar o mundo da
imundice dos homens. Assim, os sonhos premonitores do personagem-título são
oportunidades bem aproveitadas para Aronofsky brincar com simbolismos que,
mesmo fáceis de se decifrar, não deixam de ser conceitualmente interessantes,
como a terra da qual brota sangue, ou os dois momentos em que vemos Noé debaixo
de uma grande massa d’água e, na primeira vez, percebemos o personagem rodeado
de cadáveres, enquanto da segunda vemos a mesma imagem mas, de onde supúnhamos ver
corpos em decomposição, agora percebemos vários animais nadando para se salvar
das profundezas aquáticas.
É também a partir de um desses reveladores sonhos do
protagonista que Aronofsky introduz a temática da ambiguidade moral que vai guiar
Noé da metade do filme até o fim, e que compõe o seu núcleo narrativo. Nessa
sequência, quando vemos Noé chocado com a crueldade dos homens ao trocarem
mulheres por carne, matarem alegremente animais e ainda se verem envoltos em
perversão e sadismo, é interessante notar como a fotografia de Matthew
Libatique é eficiente ao criar uma lógica visual que será valiosa para que o
filme funcione. Percebam como a cena é iluminada pelo fogo, e as cores reforçam
uma visão de verdadeiro Inferno. E depois, percebam como Libatique e Aronofsky
utilizam a mesma cor amarelo-fogo para filmar os ambientes dentro da arca, não
apenas para simular um lugar iluminado por velas, mas para introduzir a ideia que
os eventos ali passados não se distanciam muito do que vimos no acampamento do
sonho. Além disso, o fato dos rostos dos personagens na arca virem
constantemente cobertos por sombras não é apenas para mostrar como é difícil
enxergar naquele lugar parcamente iluminado, mas para ilustrar o lado sombrio
daqueles indivíduos. A grande fornalha dentro da arca também é interessante
nessa interpretação, sendo mais emblemática no plano que aparece logo atrás de
Noé.
Pois aqui entra a tal temática sobre “limites”, constante nos
trabalhos de Aronofsky. Seguindo a crença de estar cumprindo a “vontade do
Criador”, segundo sua própria interpretação, Noé é confrontado com questões que
todo o seu ser moral repudia e, como ser humano, sente-se devastado por ter que
realizar ações abomináveis em nome de um “Bem maior”. Mas a imagem que viu de
si mesmo em seu sonho (num momento tipicamente aronofskiano) o assustou o suficiente, e a mera possibilidade de se
tornar o tipo de homem que tanto lhe enoja, o choca de modo que,
dialeticamente, acabe ele mesmo se tornando um. Aronofsky, aliás, deixa isso
mais do que claro no momento em que, depois de um ato particularmente cruel,
Noé é acidentalmente misturado à multidão que tenta invadir a arca. Não que ele
seja um sujeito realmente mal, afinal, ele acredita piamente que faz o que faz
por motivos importantes e incontestáveis. Mas essa mesma característica que
pode redimi-lo não poderia ser aplicada a centenas de fanáticos religiosos que,
baseando-se em suas crenças, cometeram/cometem crueldades imperdoáveis contra a
humanidade ao longo da História?
A visão do Criador que Aronofsky trás é cruamente a do Velho
Testamento: de um tirano impiedoso que obriga suas criaturas a atitudes
desumanas para provar seu amor por deus. Aqui, a questão ganha contornos éticos
e morais. A provação a qual Noé é submetido (se interpretarmos sob o viés de
que deus tinha reais planos para ele no futuro – ou não – da humanidade) pode
ser interpretada como um teste do próprio Criador para ver se valia ou não a
pena extinguir de vez a raça dos homens. Pois os argumentos usados por
Tubal-Cain (Ray Winstone), descendente de Caim, na hora de afirmar seu valor
diante do Dilúvio, não deixam de ser menos válidos quando ele afirma que foi
criado à imagem e semelhança de deus, logo podendo afirmar sua superioridade
naquele mundo. A fragilidade, então, está na própria concepção do Homem: ser
ambíguo multifacetado com iguais possibilidades de agir como um demônio ou como
um anjo, dependendo do momento. Não é atoa que uma comparação filosófica seja
traçada entre Tubal-Cain e Noé, principalmente através do relacionamento
paternal do primeiro com Cam (Logan Lerman), que remete até ao protagonista e
seu próprio pai. O que muda é apenas a motivação, e nesse sentido, é curioso
que em certo momento, mais intimista, vejamos Tubal-Cain clamando pela atenção de
deus, como um filho rejeitado. E que espécie de pai rejeita seu filho apenas
por ir contra seus planos e expectativas?
A partir desse arco, então, Aronofsky delinea as discussões
de seu filme, envolvendo o Bem e o Mal, e como a humanidade se encontra num parco
equilíbrio entre um e outro, assim como a noção de livre-arbítrio (como
estudante de psicologia, repudio esse conceito, mas tudo bem) e como o Homem se
comporta sendo deixado livre para agir de acordo com sua interpretação do mundo.
Afinal, em algum momento fica claro para todos que deus queria que Noé matasse
as filhas de Ila (Emma Watson)? Ou seria apenas o modo como o personagem
interpretou o fim das chuvas? Por que também seria tão errado ajudar algumas
pessoas agonizantes no Dilúvio? Realmente é “certo” concordar com o genocídio promovido pelo Criador? Ou ainda: o que deus realmente queria era que
Noé, no fim das contas poupasse a humanidade, ou era tudo um teste? Essa última
(e particularmente interessante) questão, no entanto, é quase estragada pelo
diretor quando investe em um diálogo dolorosamente expositivo no fim do filme.
Beneficiado com dinheiro suficiente para criar um verdadeiro
épico, Aronofsky acerta na construção de ambientes digitais que evidenciam o
próprio estado emocional naquele mundo decadente. Para todo lugar que olhamos o
que vemos é cinza, árvores cortadas e terreno árido e infértil. Até mesmo a
floresta surgida a partir da semente do Éden é evidentemente triste, apesar de
um pouco mais “feliz” do que o que víamos antes. E essa lógica é seguida pelo diretor
para criar planos emblemáticos e trágicos como aquele que mostra uma montanha
de homens e mulheres sofrendo com as inundações. Já os efeitos visuais são por
vezes fascinantes (as inundações) e por vezes decepcionantes (os animais
digitais), mas ganham nos Guardiões, os anjos caídos, um design genial que conta sua trágica história apenas com seus corpos
quebradiços e desconfortáveis, suas tristes faces, e a luz amarela que deixa-se
ver através das fendas de seu corpo e seu rosto, como dolorosas lembranças de
tempos mais felizes. Aliás, ainda é curioso que Adão e Eva, antes do Pecado
Original, sejam vistos como brilhantes luzes douradas, assim como os anjos, ou
ainda como a derradeira maçã da Árvore do Bem e do Mal parece um coração pulsante,
tudo gerando discussões que poderiam durar vários textos.
Com um elenco unânime em competência (em
especial Jennifer Connelly), que consegue dar aos personagens a devida tridimensionalidade,
Noé pode até ser uma obra mais
irregular dentro da genial carreira de Darren Aronofsky, até porque aqui, um blockbuster, ele é obrigado a aliviar na
violência (os corpos abatidos e destruídos sem qualquer evidência de sangue são
lamentáveis) e desenvolver seu filme com mais afobação do que de costume para
caber em seus 138 minutos. Ainda assim, é prova mais do que suficiente de sua ambição
e inteligência enquanto realizador.
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