quinta-feira, 10 de abril de 2014


Análise:

Expresso do Amanhã (Snowpiercer / 2013 / EUA, França, Coréia do Sul, República Checa) dir. Bong Joon-ho

por Lucas Wagner

Desde 2013, cineastas sul-coreanos de talento já há muito retificado vem ganhando destaque no Cinema mundial. O versátil Kim Jee-woon veio com o competente O Último Desafio, e o mestre Park Chan-Wook trouxe o sombrio, complexo e perverso Segredos de Sangue, obra tão deturpada quanto seus projetos anteriores. Agora chegou a vez do aclamado Bong Joon-ho, responsável pelos excepcionais Memórias de um Assassino, O Hospedeiro e Mother – A Busca Pela Verdade, demonstrando seu talento ao imprimir seu estilismo visual próprio a histórias tão diferentes, trazendo, nesse Expresso do Amanhã, uma obra bem-sucedida tanto como puro entretenimento quanto como discussão filosófica.

Adaptado pelo próprio Joon-ho em parceria com Kelly Masterson a partir da HQ francesa Le Transperceneige, a história tem como base uma tentativa de findar com o aquecimento global, que acabou resultando numa espécie de era do gelo brutal. Os seres humanos sobreviventes, confinados a um trem que circula pelo mundo todo, vivem sob o comando de Wilford, o criador do veículo. Divididos em classes, os moradores dos últimos vagões (a “cauda”) planejam uma revolta para acabar com as atrocidades que as classes superiores (habitantes da “frente” do trem) cometem diariamente contra eles.

Usando a própria estrutura do trem como uma metáfora um tanto óbvia para o posicionamento social de cada classe, Joon-ho é hábil na exploração visual do veículo, que vai se revelando mais e mais versátil e curioso quanto mais os revoltosos caminham em direção ao primeiro vagão. O design de produção de Ondrej Nekvasil consegue estabelecer bem os “diferentes universos” que habitam o trem, variando desde os ambientes escuros, amontoados e sujos da “cauda” para outros tão distintos quanto o límpido aquário. Mais importante, é como esses diferentes ambientes alcançam o grau de caricatura ideal que Joon-ho parece procurar em seu projeto, ou seja, transmitindo a estranheza da bizarrice que vemos, mas sem deixar que o filme pareça afastar-se em demasia do tom mais realista. Desse modo, se os citados alojamentos dos revoltosos parece saído diretamente das ruínas de algum país destruído por uma guerra, a escola e a boate que são vistos posteriormente possuem cores fortes, chamativas e alegres, evidenciando o evidente afastamento dos habitantes desses vagões da crua realidade que os “heróis” enfrentam todo dia.

Trabalhando com a recorrente temática de distopia, o diretor investe em elementos caricaturais tanto para demonstrar o citado afastamento da realidade como para ridicularizar os mais ricos e ignorantes, assim como foi feito nos dois Jogos Vorazes. A personagem de Tilda Swinton, por exemplo, surge como um ser quase alienígena em seu comportamento histriônico, roupas chamativas e, é claro, o toque de gênio de sua dentadura repleta de dentes podres, num detalhe que representa a podridão da própria personagem. O mesmo pode ser dito da professora infantil interpretada por Alison Pill, cuja adoração e paixão com que ensina seus pupilos sobre a bondade divina de Wilford chega à quase um êxtase no momento em que entoa uma canção sobre a grandiosidade do mesmo.

Pois aqui está um elemento importante do cerne de Expresso do Amanhã: seu subtexto religioso. Assim como o deus do Velho Testamento, Wilford é visto quase como uma entidade divina que, sem nunca dar as caras, promove atos de brutalidade e maldade evidentes em prol de alguma espécie de ordem e paz. E seus mais fiéis seguidores aqui parecem cegos de admiração frente à figura do homem, enquanto essa mesma adoração é ensinada desde cedo às criancinhas. Mas o que Wilford é, na verdade, é um potencial psicopata com delírios que no mundo normal seriam absurdos (construir um trem que roda constantemente pelo globo), mas que naquele planeta destruído pelo gelo se aplicam perfeitamente, e permitiram que ele se tornasse uma versão do Grande Irmão de Orwell e do deus do Velho Testamento, ou seja, uma combinação monstruosa.

Assim, quando finalmente aparece, Wilford se revela um sujeito frio e elegante, num ambiente idem, cujas falas claras e educadas quase mascaram as atrocidades que diz. Mas a grande questão é que sua lógica se aplica àquele universo e, o que é pior, parece ser a mesma lógica cruel que guiou diversos governantes da História, cujas atrocidades ainda ecoam pelo tempo. Pois, de sua posição privilegiada, o que ele vê quando olha para o restante da humanidade? Macacos repletos de energia que precisam de um líder e de uma boa dose de caos para conseguirem continuar vivendo. O caos, a selvageria, a necessidade de luta por uma melhora (sempre inalcançável, no fim das contas) das pessoas comuns são usados por ele, um grande estrategista, como uma forma de manter o controle do microcosmo que é o trem e alcançar seus próprios objetivos.

Apresentando uma visão adequadamente ambígua da natureza humana, Expresso do Amanhã apóia nos ombros de seu protagonista, Curtis (Chris Evans), os motores da mudança e de sua complexa perspectiva moral. Personagem trágico e psicologicamente ambíguo, Curtis é um sujeito que parece estar constantemente se policiando, guiado por um sentimento de culpa que, em sua visão de mundo, parece fazer com que qualquer atitude sua, por mais nobre que seja, não valha grande coisa no fim das contas. Para isso, mais do que essencial é a performance de Chris Evans, um ator excelente sempre que tem a oportunidade de demonstrar seu verdadeiro talento, que aqui confere grande peso dramático à Curtis, numa expressão sempre fechada e cansada, mas que nunca deixa de demonstrar humildade e medo, muitas vezes de si mesmo e do que se acha capaz. Aliás, ao longo da projeção, ele sofre testes morais e éticos que o tornam ainda mais complexo.

Com um elenco que apresenta grande diversidade étnica (perfeitamente adequada para mostrar uma parcela da humanidade num mundo pós-apocalíptico), Expresso do Amanhã se cerca de talentos que conseguem extrair o necessário para desenvolver, pelo menos um pouco, cada um dos personagens. Mas, enquanto Ed Harris assusta com a frieza de sua composição e Alison Pill frita no fanatismo da professora que interpreta, quem merece mais destaque é Tilda Swinton, cuja composição de Mason não é só divertida, mas extremamente complexa ao evidenciar camadas de profunda psicopatologia em sua personagem.

Enfraquecido com cenas de ação que fariam mais sentido se estivessem em um filme de Edgar Wright, Expresso do Amanhã consegue destacar-se na beleza de suas imagens, principalmente aquelas que mostram o mundo congelado, mas também cai quando Joon-ho acaba pesando um pouco a mão no elemento caricatural e cria uma espécie de antagonista quase indestrutível, mas completamente desnescessário. No entanto, é ótimo que Bong Joon-ho, sem estar ligado a um grande estúdio, tenha liberdade para trabalhar com sua habitual violência estética, não economizando em sanguinolência, mutilações e nem mesmo numa quantidade suficiente de palavrões que afasta o longa da mesquinharia. Além disso, a coragem do cineasta fica ainda evidente quando mata personagens importantes sem frescura ou aviso prévio.

Apesar de seus problemas, Expresso do Amanhã é mais um trabalho de grande competência de Bong Joon-ho, e também uma ficção científica exemplar ao aproveitar a trama ficcional para abarcar reflexões mais complexas e desafiadoras, assim como os melhores exemplos do gênero fazem.

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