Análise:
Expresso do Amanhã (Snowpiercer / 2013 / EUA, França, Coréia do Sul, República Checa)
dir. Bong Joon-ho
por
Lucas Wagner
Desde 2013, cineastas
sul-coreanos de talento já há muito retificado vem ganhando destaque no Cinema
mundial. O versátil Kim Jee-woon veio com o competente O Último Desafio, e o mestre Park Chan-Wook trouxe o sombrio,
complexo e perverso Segredos de Sangue,
obra tão deturpada quanto seus projetos anteriores. Agora chegou a vez do
aclamado Bong Joon-ho, responsável pelos excepcionais Memórias de um Assassino, O
Hospedeiro e Mother – A Busca Pela
Verdade, demonstrando seu talento ao imprimir seu estilismo visual próprio
a histórias tão diferentes, trazendo, nesse Expresso
do Amanhã, uma obra bem-sucedida tanto como puro entretenimento quanto como
discussão filosófica.
Adaptado pelo próprio
Joon-ho em parceria com Kelly Masterson a partir da HQ francesa Le Transperceneige, a história tem como
base uma tentativa de findar com o aquecimento global, que acabou resultando
numa espécie de era do gelo brutal. Os seres humanos sobreviventes, confinados
a um trem que circula pelo mundo todo, vivem sob o comando de Wilford, o
criador do veículo. Divididos em classes, os moradores dos últimos vagões (a “cauda”)
planejam uma revolta para acabar com as atrocidades que as classes superiores
(habitantes da “frente” do trem) cometem diariamente contra eles.
Usando a própria
estrutura do trem como uma metáfora um tanto óbvia para o posicionamento social
de cada classe, Joon-ho é hábil na exploração visual do veículo, que vai se
revelando mais e mais versátil e curioso quanto mais os revoltosos caminham em
direção ao primeiro vagão. O design de
produção de Ondrej Nekvasil consegue estabelecer bem os “diferentes universos”
que habitam o trem, variando desde os ambientes escuros, amontoados e sujos da “cauda”
para outros tão distintos quanto o límpido aquário. Mais importante, é como
esses diferentes ambientes alcançam o grau de caricatura ideal que Joon-ho
parece procurar em seu projeto, ou seja, transmitindo a estranheza da bizarrice
que vemos, mas sem deixar que o filme pareça afastar-se em demasia do tom mais
realista. Desse modo, se os citados alojamentos dos revoltosos parece saído
diretamente das ruínas de algum país destruído por uma guerra, a escola e a
boate que são vistos posteriormente possuem cores fortes, chamativas e alegres,
evidenciando o evidente afastamento dos habitantes desses vagões da crua
realidade que os “heróis” enfrentam todo dia.
Trabalhando com a
recorrente temática de distopia, o diretor investe em elementos caricaturais
tanto para demonstrar o citado afastamento da realidade como para ridicularizar
os mais ricos e ignorantes, assim como foi feito nos dois Jogos Vorazes. A personagem de Tilda Swinton, por exemplo, surge
como um ser quase alienígena em seu comportamento histriônico, roupas
chamativas e, é claro, o toque de gênio de sua dentadura repleta de dentes
podres, num detalhe que representa a podridão da própria personagem. O mesmo pode
ser dito da professora infantil interpretada por Alison Pill, cuja adoração e
paixão com que ensina seus pupilos sobre a bondade divina de Wilford chega à
quase um êxtase no momento em que entoa uma canção sobre a grandiosidade do mesmo.
Pois aqui está um
elemento importante do cerne de Expresso
do Amanhã: seu subtexto religioso. Assim como o deus do Velho Testamento,
Wilford é visto quase como uma entidade divina que, sem nunca dar as caras,
promove atos de brutalidade e maldade evidentes em prol de alguma espécie de
ordem e paz. E seus mais fiéis seguidores aqui parecem cegos de admiração
frente à figura do homem, enquanto essa mesma adoração é ensinada desde cedo às
criancinhas. Mas o que Wilford é, na verdade, é um potencial psicopata com
delírios que no mundo normal seriam absurdos (construir um trem que roda
constantemente pelo globo), mas que naquele planeta destruído pelo gelo se
aplicam perfeitamente, e permitiram que ele se tornasse uma versão do Grande
Irmão de Orwell e do deus do Velho Testamento, ou seja, uma combinação
monstruosa.
Assim, quando
finalmente aparece, Wilford se revela um sujeito frio e elegante, num ambiente
idem, cujas falas claras e educadas quase mascaram as atrocidades que diz. Mas
a grande questão é que sua lógica se aplica àquele universo e, o que é pior,
parece ser a mesma lógica cruel que guiou diversos governantes da História,
cujas atrocidades ainda ecoam pelo tempo. Pois, de sua posição privilegiada, o
que ele vê quando olha para o restante da humanidade? Macacos repletos de
energia que precisam de um líder e de
uma boa dose de caos para conseguirem continuar vivendo. O caos, a selvageria,
a necessidade de luta por uma melhora (sempre inalcançável, no fim das contas) das
pessoas comuns são usados por ele, um grande estrategista, como uma forma de
manter o controle do microcosmo que é o trem e alcançar seus próprios
objetivos.
Apresentando uma visão
adequadamente ambígua da natureza humana, Expresso
do Amanhã apóia nos ombros de seu protagonista, Curtis (Chris Evans), os
motores da mudança e de sua complexa perspectiva moral. Personagem trágico e
psicologicamente ambíguo, Curtis é um sujeito que parece estar constantemente se
policiando, guiado por um sentimento de culpa que, em sua visão de mundo,
parece fazer com que qualquer atitude sua, por mais nobre que seja, não valha
grande coisa no fim das contas. Para isso, mais do que essencial é a
performance de Chris Evans, um ator excelente sempre que tem a oportunidade de
demonstrar seu verdadeiro talento, que aqui confere grande peso dramático à
Curtis, numa expressão sempre fechada e cansada, mas que nunca deixa de
demonstrar humildade e medo, muitas vezes de si mesmo e do que se acha capaz.
Aliás, ao longo da projeção, ele sofre testes morais e éticos que o tornam ainda
mais complexo.
Com um elenco que apresenta
grande diversidade étnica (perfeitamente adequada para mostrar uma parcela da
humanidade num mundo pós-apocalíptico), Expresso
do Amanhã se cerca de talentos que conseguem extrair o necessário para
desenvolver, pelo menos um pouco, cada um dos personagens. Mas, enquanto Ed
Harris assusta com a frieza de sua composição e Alison Pill frita no fanatismo
da professora que interpreta, quem merece mais destaque é Tilda Swinton, cuja
composição de Mason não é só divertida, mas extremamente complexa ao evidenciar
camadas de profunda psicopatologia em sua personagem.
Enfraquecido com cenas
de ação que fariam mais sentido se estivessem em um filme de Edgar Wright, Expresso do Amanhã consegue destacar-se
na beleza de suas imagens, principalmente aquelas que mostram o mundo congelado,
mas também cai quando Joon-ho acaba pesando um pouco a mão no elemento
caricatural e cria uma espécie de antagonista quase indestrutível, mas
completamente desnescessário. No entanto, é ótimo que Bong Joon-ho, sem estar
ligado a um grande estúdio, tenha liberdade para trabalhar com sua habitual
violência estética, não economizando em sanguinolência, mutilações e nem mesmo
numa quantidade suficiente de palavrões que afasta o longa da mesquinharia. Além disso, a coragem do cineasta fica ainda evidente quando mata personagens importantes sem frescura ou aviso prévio.
Apesar de seus
problemas, Expresso do Amanhã é mais
um trabalho de grande competência de Bong Joon-ho, e também uma ficção
científica exemplar ao aproveitar a trama ficcional para abarcar reflexões mais
complexas e desafiadoras, assim como os melhores exemplos do gênero fazem.
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