domingo, 12 de janeiro de 2014



Análise:

Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac: Volume 1 / 2013 / Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido, França) dir. Lars Von Trier

por Lucas Wagner

Lars Von Trier é um diretor com uma notável inteligência cinematográfica, que permite que crie estratégias visuais fascinantes em vários de seus filmes, mostrando-se sábio em como transmitir ideias ao espectador através de símbolos visuais no mínimo geniais. O que o impede de ser um cineasta à altura de sua inteligência é uma visão de mundo arrogante e parcial, demonstrada em seus filmes não através de um pessimismo calculado e cínico como o de um Michael Haneke (diretor de Amor) ou John Houston (de Relíquia Macabra), mas através de um pessimismo extremista que chega a ser até tolo. Para exemplificação, basta enxergar a solução para os problemas de Nicole Kidman em Dogville ou como a visão de que apenas a depressão permite real acesso à Verdade, em Melancolia.

O que tinha animado minhas perspectivas frente à esse Ninfomaníaca era que o diretor focasse suas energias em criar um estudo de personagem e não alguma reflexão que envolvessem suas visões de mundo. Assim como grandes cineastas à exemplo de Park Chan-Wook em Segredos de Sangue, Darren Aronofsky em Cisne Negro e David Lynch em Twin Peaks: Fire Walk With Me e Estrada Perdida, Von Trier volta seu olhar para um tema poderoso, complexo e irresistível: a sexualidade feminina. Conhecendo a habilidade do diretor em criar símbolos e desenvolver personagens ambíguos, era normal esperar desse seu novo filme uma obra repleta de nuances e observações sutis e complexas em torno do desenvolvimento da sexualidade, do vício em sexo e da perversão. Infelizmente, onde geralmente mais acerta, aqui é onde Von Trier tropeça, enchendo a primeira metade desse seu épico de cerca de cinco horas de duração com uma obviedade absurda e completa falta de sutileza/elegância na construção de seus símbolos.

Pois ao estruturar seu longa a partir de flashbacks da tal ninfomaníaca, Joe (Charlotte Gainsbourg – dona de um dos sotaques mais lindos que conheço) contando sua história para o desconhecido Seligman (Stelan Skarsgard), Von Trier cria entre os dois diálogos cultos e por vezes interessantes que, se por um lado acabam por conter algumas boas observações da projeção, por outro servem como via de escape para que o diretor despeje todos os simbolismos e os mastigue para o espectador, tirando toda a beleza que poderia existir.

E há alguma beleza em alguns desses simbolismos. Ninfomaníaca – Volume 1 enxerga o sexo e o erótico de forma a coloca-lo lado a lado com diversos eventos naturais e até artísticos. Apesar de encher a paciência ao buscar oferecer sempre algum insight (muitas vezes forçados), o roteiro de Von Trier é relativamente eficaz ao fazer comparações de parceiros sexuais de Joe, e da própria protagonista, com animais selvagens, e até mesmo a atividade de pesca em certo momento serve (ou deveria servir) como metáfora para a caça de Joe e sua amiga, B., à homens em um trem. E por mais que seja pueril ao clamar por uma forçada comparação de certos parceiros de Joe com a sequência de Fibonacci, o paralelo traçado com uma obra de Bach confere ao sexo um caráter artístico pelo menos interessante no momento em que os elementos que constituem a música encontram um correlato na vida e atividades da protagonista.

Como já dito, o problema é que nada disso pode ser deduzido ou percebido pelo próprio espectador, já que Von Trier mastiga essas observações e deduções nos diálogos, conferindo à Ninfomaníaca um caráter insuportavelmente didático. Não raro Seligman interrompe o fluxo de ideias de Joe para fazer uma correlação de sua história com a pesca, a música, ou o que quer que seja, obrigando o espectador à uma expressão de impaciência que parece ser reflexo do próprio sentimento de Joe diante daquelas interrupções. E como se isso não bastasse, o diretor/roteirista se entrega à diálogos expositivos que martelam ideias já claras, como na repetição de Seligman de sua observação de que Joe se enxerga como uma criatura deturpada. A obviedade da direção chega ao extremo quando, num dos oito capítulos aqui narrados, Von Trier opta por uma fotografia totalmente em preto e branco (diferente do resto do filme), numa expressão mais do que óbvia do estado emocional da protagonista diante daqueles eventos específicos, e que só servira para deixar hipsters de "barraca armada". Não há aqui, em nenhum mísero momento, um pingo do brilhantismo do Von Trier que teve a audácia de criar um cavalo chamado Abraão, carregando uma mulher depressiva, que não consegue atravessar uma mera ponte de um riacho, num dos simbolismos mais sublimes de Melancolia.

Os melhores momentos da direção de Ninfomaníaca – Volume 1 não são senão os que o diretor consegue transmitir ideias a partir das imagens, sem precisar martela-las. Vide, por exemplo, a abertura do filme, que mergulha o espectador num insuportável silêncio diante de uma tela preta (nos fazendo afundar dentro daquele universo), depois corta para diversas imagens melancólicas e sombrias envolvendo neve e orifícios escuros, acompanhadas de um design de som que ressalta o barulho suave de água de encontro à uma superfície, e surpreendentemente depois somos engolfados pelo som pesado da banda metal alemã Rammstein. Aqui o que vemos é a sobreposição daquela imagem taciturna pela explosão de um som violento que representa o tumulto interno de sua desesperada protagonista. Assim também, as cenas de sexo são bem filmadas justamente pela precariedade de cortes na maioria delas, representando assim experiências enfadonhas, contrastando com uma experiência sexual realmente antecipada pela protagonista, no fim desse Volume 1, que surge quase poética pelo modo como o diretor viaja pelos corpos dos atores, em cortes elegantes sempre sensuais. Também é curioso ver o talento pouco explorado de Von Trier para o humor negro ser aqui mais desenvolvido, em cenas realmente engraçadas como a fantasia de Joe dando aula, ou, em especial, a hilária sequência envolvendo a personagem de Uma Thurman.

Se, no entanto, uma das coisas mais apreciáveis no citado Segredos de Sangue era justamente as estratégias visuais criadas por Chan-Wook para desenvolver a sexualidade e perversão de India Stoker, em Ninfomaníaca – Volume 1, Von Trier gasta todas as suas metáforas nos diálogos, e toda a trajetória sexual de Joe é narrada e detalhada por uma narração em off que, pelo menos até onde vai esse Volume 1, faria muito bem ao longa caso não existisse.

Mas é possível encontrar alguns elementos curiosos no desenvolvimento de Joe, como a relação fria que mantinha com a mãe (que pode ter tido alguma influência na sua auto-imagem negativa) e o contato maior que tinha com o pai, pessoa bem mais próxima e interessada pela filha (que pode ter auxiliado na sua fixação por homens). Infelizmente, Von Trier presta pouquíssima atenção à esses detalhes, restando apenas algumas poucos elementos que salvam Joe como personagem, já que sua própria natureza é interessantíssima: ao mesmo tempo em que demonstra quase uma sociopatia na falta de sentimentos, é palpável que existe pelo menos uma consciência de que ela deveria se sentir culpada por tudo o que fez.

Enfim, Ninfomaníaca – Volume 1 mostra um Von Trier mais covarde, que não confia na inteligência de seus espectadores e entrega uma obra carente de maior sutileza, não chegando aos pés de trabalhos seus como Anticristo (seu único filme realmente impecável, apesar de que, mesmo com as ressalvas que fiz, eu goste de Dogville e Melancolia). Apesar de tudo, fiquei curioso para acompanhar o resto da jornada erótica de Joe, pois é justamente em sua última cena que Volume 1 realmente conseguiu me prender a atenção. Esperemos...

*Aqui vai, de brinde, uma zoeira da qual eu e outros críticos/estudantes de Cinema fizemos parte, nos divertindo às custas desse novo filme de Lars Von Trier:






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