Análise:
Ninfomaníaca – Volume 1 (Nymphomaniac: Volume
1 / 2013 / Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido, França) dir. Lars Von
Trier
por Lucas Wagner
Lars Von Trier é um diretor com uma notável
inteligência cinematográfica, que permite que crie estratégias visuais
fascinantes em vários de seus filmes, mostrando-se sábio em como transmitir
ideias ao espectador através de símbolos visuais no mínimo geniais. O que o
impede de ser um cineasta à altura de sua inteligência é uma visão de mundo
arrogante e parcial, demonstrada em seus filmes não através de um pessimismo
calculado e cínico como o de um Michael Haneke (diretor de Amor) ou John Houston (de Relíquia
Macabra), mas através de um pessimismo extremista que chega a ser até tolo.
Para exemplificação, basta enxergar a solução para os problemas de Nicole
Kidman em Dogville ou como a visão de
que apenas a depressão permite real acesso à Verdade, em Melancolia.
O que tinha animado minhas perspectivas frente à esse Ninfomaníaca era que o diretor focasse
suas energias em criar um estudo de personagem e não alguma reflexão que
envolvessem suas visões de mundo. Assim como grandes cineastas à exemplo de
Park Chan-Wook em Segredos de Sangue,
Darren Aronofsky em Cisne Negro e
David Lynch em Twin Peaks: Fire Walk With
Me e Estrada Perdida, Von Trier
volta seu olhar para um tema poderoso, complexo e irresistível: a sexualidade
feminina. Conhecendo a habilidade do diretor em criar símbolos e desenvolver
personagens ambíguos, era normal esperar desse seu novo filme uma obra repleta
de nuances e observações sutis e complexas em torno do desenvolvimento da
sexualidade, do vício em sexo e da perversão. Infelizmente, onde geralmente
mais acerta, aqui é onde Von Trier tropeça, enchendo a primeira metade desse
seu épico de cerca de cinco horas de duração com uma obviedade absurda e
completa falta de sutileza/elegância na construção de seus símbolos.
Pois ao estruturar seu longa a partir de flashbacks da tal ninfomaníaca, Joe
(Charlotte Gainsbourg – dona de um dos sotaques mais lindos que conheço)
contando sua história para o desconhecido Seligman (Stelan Skarsgard), Von
Trier cria entre os dois diálogos cultos e por vezes interessantes que, se por um lado
acabam por conter algumas boas observações da projeção, por outro servem
como via de escape para que o diretor despeje todos os simbolismos e os
mastigue para o espectador, tirando toda a beleza que poderia existir.
E há alguma beleza em alguns desses simbolismos. Ninfomaníaca – Volume 1 enxerga o sexo e
o erótico de forma a coloca-lo lado a lado com diversos eventos naturais e até
artísticos. Apesar de encher a paciência ao buscar oferecer sempre algum insight (muitas vezes forçados), o roteiro de Von Trier é relativamente eficaz ao fazer comparações de
parceiros sexuais de Joe, e da própria protagonista, com animais selvagens, e
até mesmo a atividade de pesca em certo momento serve (ou deveria servir) como
metáfora para a caça de Joe e sua amiga, B., à homens em um trem. E por mais que seja pueril ao clamar por uma forçada comparação de certos parceiros de Joe com
a sequência de Fibonacci, o paralelo traçado com uma obra de Bach confere ao sexo um
caráter artístico pelo menos interessante no momento em que os elementos que constituem a música
encontram um correlato na vida e atividades da protagonista.
Como já dito, o problema é que nada disso pode ser
deduzido ou percebido pelo próprio espectador, já que Von Trier mastiga essas observações
e deduções nos diálogos, conferindo à Ninfomaníaca
um caráter insuportavelmente didático. Não raro Seligman interrompe o fluxo
de ideias de Joe para fazer uma correlação de sua história com a pesca, a
música, ou o que quer que seja, obrigando o espectador à uma expressão de
impaciência que parece ser reflexo do próprio sentimento de Joe diante daquelas
interrupções. E como se isso não bastasse, o diretor/roteirista se entrega à
diálogos expositivos que martelam ideias já claras, como na repetição de
Seligman de sua observação de que Joe se enxerga como uma criatura deturpada. A
obviedade da direção chega ao extremo quando, num dos oito capítulos aqui
narrados, Von Trier opta por uma fotografia totalmente em preto e branco
(diferente do resto do filme), numa expressão mais do que óbvia do estado
emocional da protagonista diante daqueles eventos específicos, e que só servira para deixar hipsters de "barraca armada". Não há aqui, em
nenhum mísero momento, um pingo do brilhantismo do Von Trier que teve a audácia
de criar um cavalo chamado Abraão, carregando uma mulher depressiva, que não
consegue atravessar uma mera ponte de um riacho, num dos simbolismos mais
sublimes de Melancolia.
Os melhores momentos da direção de Ninfomaníaca – Volume 1 não são senão os que o diretor consegue
transmitir ideias a partir das imagens, sem precisar martela-las. Vide, por
exemplo, a abertura do filme, que mergulha o espectador num insuportável silêncio
diante de uma tela preta (nos fazendo afundar dentro daquele universo), depois
corta para diversas imagens melancólicas e sombrias envolvendo neve e orifícios
escuros, acompanhadas de um design de
som que ressalta o barulho suave de água de encontro à uma superfície, e
surpreendentemente depois somos engolfados pelo som pesado da banda metal alemã
Rammstein. Aqui o que vemos é a sobreposição daquela imagem taciturna pela
explosão de um som violento que representa o tumulto interno de sua desesperada
protagonista. Assim também, as cenas de sexo são bem filmadas justamente pela
precariedade de cortes na maioria delas, representando assim experiências
enfadonhas, contrastando com uma experiência sexual realmente antecipada pela
protagonista, no fim desse Volume 1,
que surge quase poética pelo modo como o diretor viaja pelos corpos dos atores,
em cortes elegantes sempre sensuais. Também é curioso ver o talento pouco
explorado de Von Trier para o humor negro ser aqui mais desenvolvido, em cenas
realmente engraçadas como a fantasia de Joe dando aula, ou, em especial, a
hilária sequência envolvendo a personagem de Uma Thurman.
Se, no entanto, uma das coisas mais apreciáveis no
citado Segredos de Sangue era justamente
as estratégias visuais criadas por Chan-Wook para desenvolver a sexualidade e
perversão de India Stoker, em Ninfomaníaca
– Volume 1, Von Trier gasta todas as suas metáforas nos diálogos, e toda a
trajetória sexual de Joe é narrada e detalhada por uma narração em off que, pelo menos até onde vai esse Volume 1, faria muito bem ao longa caso
não existisse.
Mas é possível encontrar alguns elementos curiosos no
desenvolvimento de Joe, como a relação fria que mantinha com a mãe (que pode
ter tido alguma influência na sua auto-imagem negativa) e o contato maior que tinha
com o pai, pessoa bem mais próxima e interessada pela filha (que pode ter
auxiliado na sua fixação por homens). Infelizmente, Von Trier presta
pouquíssima atenção à esses detalhes, restando apenas algumas poucos elementos
que salvam Joe como personagem, já que sua própria natureza é
interessantíssima: ao mesmo tempo em que demonstra quase uma sociopatia na
falta de sentimentos, é palpável que existe pelo menos uma consciência de que
ela deveria se sentir culpada por
tudo o que fez.
Enfim, Ninfomaníaca
– Volume 1 mostra um Von Trier mais covarde, que não confia na inteligência
de seus espectadores e entrega uma obra carente de maior sutileza, não chegando
aos pés de trabalhos seus como Anticristo
(seu único filme realmente impecável, apesar de que, mesmo com as ressalvas
que fiz, eu goste de Dogville e Melancolia). Apesar de tudo, fiquei
curioso para acompanhar o resto da jornada erótica de Joe, pois é justamente em
sua última cena que Volume 1 realmente
conseguiu me prender a atenção. Esperemos...
*Aqui vai, de brinde, uma zoeira da qual eu e outros
críticos/estudantes de Cinema fizemos parte, nos divertindo às custas desse
novo filme de Lars Von Trier:
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