Análise:
Alabama Monroe (The Broken Circle Breakdown / 2013 / Bélgica) dir. Felix von Groening
por Lucas Wagner
Ao mesmo tempo em que é
uma obra sensível, Alabama Monroe também
é um filme impiedoso. Quando começam os créditos, o sentimento maior é de pura
devastação, e se as lágrimas foram brutalmente seguradas ao longo dos 111
minutos de duração, no fim estas correm soltas, pois é a única resposta que
conseguimos dar à torturante jornada do casal Didier e Elise.
Pois ver Didier e
Elise, durante uma apresentação musical, se entregarem à um beijo apaixonado
enquanto uma luz vermelha os abraça (representando sua paixão), se torna quase
uma flagelação por sabermos que, no futuro, terão de unir suas forças para
lutar contra o câncer que mata sua filhinha, Maybelle, o que deve ser a mais
fiel representação de um inferno na Terra para pais e mães.
Os créditos por
conseguirmos sentir tanto durante a projeção se deve à abordagem sensível do
diretor Felix van Groening, que adota uma narrativa que flui entre
passado, presente e futuro para desenvolver o relacionamento do casal principal
entre si e com sua filha. Assim, somos sensibilizados desde o princípio quando
vemos Didier cantando uma canção num dos momentos cruciais para Elise se
apaixonar por ele e logo depois vemos, no futuro, a pequena Maybelle recebendo
injeções. Coadunando sequências fortes e tristes com outras que mostram a
alegria da paixão nascente dos protagonistas, Alabama Monroe tem uma atmosfera de constante melancolia, por mais
que sejamos capazes de sentir o afeto que enche cada sequência.
Sequências absurdamente
bem filmadas por van Groening, que investe em planos delicados e atentos, como
todas as vezes que Didier observa, comovido e maravilhado, Elise cantando, ou
quando essa observa seu futuro marido com fascínio enquanto este fala eventualidades
sobre o cotidiano. Assim, o cineasta e o diretor de fotografia Rubens Impens
também demonstram inteligência na paleta de cores, quando parecem colorir
várias das sequências mais alegres e nostálgicas com um amarelo dourado, levemente alaranjado, que
lembra o pôr do sol, conferindo uma atmosfera de sonho para sequências como a que Didier e
Elise fazem sexo ou quando Maybelle tem uma divertida surpresa em sua casa,
contrastando com a paleta fria que engloba os momentos mais melancólicos,
sempre numa coloração azul (blue, em
inglês, também significa tristeza), por
vezes forte e explosiva, como na sirene de uma ambulância. O vermelho forte que
aqui também é tão evidente, serve (como já dito) de cor para a paixão fervorosa
do casal, colorindo momentos como suas conversas debaixo de um cobertor depois
de transar; mas, no decorrer da projeção, essa mesma cor adquire uma conotação
maligna, infernal, como em um delírio de uma personagem, servindo como ironia
para o fato de que foi aquela paixão avalassadora de antes que trouxe o
presente inferno que todos viviam.
A citada fluidez da
narrativa (conseguida através do estupendo trabalho do montador Nico Launen)
permite não apenas que a obra se desenrole com elegância, mas ainda permite que
criemos laços apertados com aqueles indivíduos, como ao cortar de uma briga
poderosa para o momento em que o casal se conheceu, servindo de lembrança de um
momento mágico que existiu que faria uma briga daquelas parecer algo
inimaginável. Launen também apresenta inteligência ao encontrar as formas mais
elegantes de viajar pelo filme, fazendo com que este deslize suave através de
nossos olhos e ouvidos, ao empregar raccords
sonoros belíssimos para costurar
as sequências, como ao costurar o som de um rugido juvenil de Maybelle imitando
um tigre em uma cena, para o ronco do motor de uma caminhonete em outra. Esses raccords sonoros também funcionam quando as canções da banda de Bluegrass dos protagonistas servem para
viagens temporais, e às vezes, o mero som de um delicado acorde de banjo se
torna a ligação para uma determinada outra sequência, em uma época diferente.
Alabama
Monroe apresenta uma narrativa que ainda é capaz de
surpreender o espectador justamente por ir contra o que os maiores clichês
mandam, e consequentemente talvez seja complicado continuar essa análise sem o
perigo de cair em alguns spoilers, e por
isso o restante do texto deve ser lido apenas por quem viu a obra. E digo isso
em função do que é o maior objetivo do filme: explorar o relacionamento de
Didier e Elise antes e depois da morte de Maybelle. Funcionando como um casal
dinâmico e perdidamente apaixonado, Didier e Elise apresentam um carinho e
fascínio impressionantes em relação ao outro, sendo capazes de mudanças notáveis em
suas vidas e, à princípio, personalidades tão distintas. Elise, por exemplo, é
retratada pela linda Verlee Baetens como uma mulher sensível e bem humorada,
mas o seu corpo tatuado apresenta traços de uma mulher forte que é capaz de
reconstruir suas emoções de maneira criativa, como ao transformar as tatuagens
de nomes dos ex-namorados em desenhos elaborados, apresentando uma predileção
notável por caveiras e flores, representando assim seu caráter de mulher forte
e sensível. Elise, no entanto, figura que não poderia parecer mais distante do country cantado por Didier, acaba
entrando para a banda do amado, sendo uma adição fenomenal (a voz da moça é
algo quase divino). Já Didier (numa bela atuação de Johan Heidenbergh), homem
grandalhão mas sensível como um poeta, idolatra a namorada de todas as formas,
e se acaba assustando-se ao ver toda sua vida mudada pela gravidez da parceira,
logo arruma um jeito de se reorientar e construir uma nova vida a partir dessa
variável.
Isso é o casal antes da
morte da filha. Pois vê-los completamente massacrados e quebrados pelo luto é
uma história bem diferente. A princípio, é tocante vê-los resistindo à tentação
de sucumbir à explosões injustas um com o outro, que seriam tentativas
irracionais de pôr ordem no caos que viraram suas emoções, e é devastador ver
Didier repetindo para a esposa “Você só está querendo criar uma briga”, e logo
depois ele mesmo sucumbindo à essa tentação. E assim cada um deles busca em
crenças diferentes alguns confortos, seja Elise na religião ou Didier (um ateu)
numa briga tardia e (naquele contexto) inútil contra a proibição de pesquisas
com células-tronco (e seus argumentos são bem válidos, apesar de serem
claramente um mecanismo de defesa). Aos poucos, ele vai quase perdendo a
sanidade em sua fúria nessa causa, enquanto a antigamente feliz e doce Elise
busca uma forma mais radical de cobrir uma tatuagem que agora não está em sua
carne, mas em sua alma, e troca seu nome, como se assim pudesse mudar sua
identidade, algo que ela, posteriormente, reconhece como inútil.
E se é frustrante para
um ateu como eu ver o cineasta apoiando, no fim das contas, o lado da religião, Alabama Monroe ainda conseguiu
me fazer imaginar se, afinal, Maybelle não se tornou uma estrela, depois de sua
morte. Não no sentido que deixa Didier constrangido, ou seja, como se a filha
literalmente virasse uma estrela, mas sim no sentido de que a luz de uma
estrela que explodiu anos antes continua chegando aos olhos da humanidade: a
luz de Maybelle continua a passar pelas vidas de seus pais durante muito tempo
depois de sua morte...
Belíssima análise :)
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