domingo, 26 de janeiro de 2014


Análise:

Alabama Monroe (The Broken Circle Breakdown / 2013 / Bélgica) dir. Felix von Groening

por Lucas Wagner

Ao mesmo tempo em que é uma obra sensível, Alabama Monroe também é um filme impiedoso. Quando começam os créditos, o sentimento maior é de pura devastação, e se as lágrimas foram brutalmente seguradas ao longo dos 111 minutos de duração, no fim estas correm soltas, pois é a única resposta que conseguimos dar à torturante jornada do casal Didier e Elise.

Pois ver Didier e Elise, durante uma apresentação musical, se entregarem à um beijo apaixonado enquanto uma luz vermelha os abraça (representando sua paixão), se torna quase uma flagelação por sabermos que, no futuro, terão de unir suas forças para lutar contra o câncer que mata sua filhinha, Maybelle, o que deve ser a mais fiel representação de um inferno na Terra para pais e mães.

Os créditos por conseguirmos sentir tanto durante a projeção se deve à abordagem sensível do diretor Felix van Groening, que adota uma narrativa que flui entre passado, presente e futuro para desenvolver o relacionamento do casal principal entre si e com sua filha. Assim, somos sensibilizados desde o princípio quando vemos Didier cantando uma canção num dos momentos cruciais para Elise se apaixonar por ele e logo depois vemos, no futuro, a pequena Maybelle recebendo injeções. Coadunando sequências fortes e tristes com outras que mostram a alegria da paixão nascente dos protagonistas, Alabama Monroe tem uma atmosfera de constante melancolia, por mais que sejamos capazes de sentir o afeto que enche cada sequência.

Sequências absurdamente bem filmadas por van Groening, que investe em planos delicados e atentos, como todas as vezes que Didier observa, comovido e maravilhado, Elise cantando, ou quando essa observa seu futuro marido com fascínio enquanto este fala eventualidades sobre o cotidiano. Assim, o cineasta e o diretor de fotografia Rubens Impens também demonstram inteligência na paleta de cores, quando parecem colorir várias das sequências mais alegres e nostálgicas com um amarelo dourado, levemente alaranjado, que lembra o pôr do sol, conferindo uma atmosfera de sonho para sequências como a que Didier e Elise fazem sexo ou quando Maybelle tem uma divertida surpresa em sua casa, contrastando com a paleta fria que engloba os momentos mais melancólicos, sempre numa coloração azul (blue, em inglês, também significa tristeza), por vezes forte e explosiva, como na sirene de uma ambulância. O vermelho forte que aqui também é tão evidente, serve (como já dito) de cor para a paixão fervorosa do casal, colorindo momentos como suas conversas debaixo de um cobertor depois de transar; mas, no decorrer da projeção, essa mesma cor adquire uma conotação maligna, infernal, como em um delírio de uma personagem, servindo como ironia para o fato de que foi aquela paixão avalassadora de antes que trouxe o presente inferno que todos viviam.

A citada fluidez da narrativa (conseguida através do estupendo trabalho do montador Nico Launen) permite não apenas que a obra se desenrole com elegância, mas ainda permite que criemos laços apertados com aqueles indivíduos, como ao cortar de uma briga poderosa para o momento em que o casal se conheceu, servindo de lembrança de um momento mágico que existiu que faria uma briga daquelas parecer algo inimaginável. Launen também apresenta inteligência ao encontrar as formas mais elegantes de viajar pelo filme, fazendo com que este deslize suave através de nossos olhos e ouvidos, ao empregar raccords sonoros belíssimos para costurar as sequências, como ao costurar o som de um rugido juvenil de Maybelle imitando um tigre em uma cena, para o ronco do motor de uma caminhonete em outra. Esses raccords sonoros também funcionam quando as canções da banda de Bluegrass dos protagonistas servem para viagens temporais, e às vezes, o mero som de um delicado acorde de banjo se torna a ligação para uma determinada outra sequência, em uma época diferente.

Alabama Monroe apresenta uma narrativa que ainda é capaz de surpreender o espectador justamente por ir contra o que os maiores clichês mandam, e consequentemente talvez seja complicado continuar essa análise sem o perigo de cair em alguns spoilers, e por isso o restante do texto deve ser lido apenas por quem viu a obra. E digo isso em função do que é o maior objetivo do filme: explorar o relacionamento de Didier e Elise antes e depois da morte de Maybelle. Funcionando como um casal dinâmico e perdidamente apaixonado, Didier e Elise apresentam um carinho e fascínio impressionantes em relação ao outro, sendo capazes de mudanças notáveis em suas vidas e, à princípio, personalidades tão distintas. Elise, por exemplo, é retratada pela linda Verlee Baetens como uma mulher sensível e bem humorada, mas o seu corpo tatuado apresenta traços de uma mulher forte que é capaz de reconstruir suas emoções de maneira criativa, como ao transformar as tatuagens de nomes dos ex-namorados em desenhos elaborados, apresentando uma predileção notável por caveiras e flores, representando assim seu caráter de mulher forte e sensível. Elise, no entanto, figura que não poderia parecer mais distante do country cantado por Didier, acaba entrando para a banda do amado, sendo uma adição fenomenal (a voz da moça é algo quase divino). Já Didier (numa bela atuação de Johan Heidenbergh), homem grandalhão mas sensível como um poeta, idolatra a namorada de todas as formas, e se acaba assustando-se ao ver toda sua vida mudada pela gravidez da parceira, logo arruma um jeito de se reorientar e construir uma nova vida a partir dessa variável.

Isso é o casal antes da morte da filha. Pois vê-los completamente massacrados e quebrados pelo luto é uma história bem diferente. A princípio, é tocante vê-los resistindo à tentação de sucumbir à explosões injustas um com o outro, que seriam tentativas irracionais de pôr ordem no caos que viraram suas emoções, e é devastador ver Didier repetindo para a esposa “Você só está querendo criar uma briga”, e logo depois ele mesmo sucumbindo à essa tentação. E assim cada um deles busca em crenças diferentes alguns confortos, seja Elise na religião ou Didier (um ateu) numa briga tardia e (naquele contexto) inútil contra a proibição de pesquisas com células-tronco (e seus argumentos são bem válidos, apesar de serem claramente um mecanismo de defesa). Aos poucos, ele vai quase perdendo a sanidade em sua fúria nessa causa, enquanto a antigamente feliz e doce Elise busca uma forma mais radical de cobrir uma tatuagem que agora não está em sua carne, mas em sua alma, e troca seu nome, como se assim pudesse mudar sua identidade, algo que ela, posteriormente, reconhece como inútil.

E se é frustrante para um ateu como eu ver o cineasta apoiando, no fim das contas, o lado da religião, Alabama Monroe ainda conseguiu me fazer imaginar se, afinal, Maybelle não se tornou uma estrela, depois de sua morte. Não no sentido que deixa Didier constrangido, ou seja, como se a filha literalmente virasse uma estrela, mas sim no sentido de que a luz de uma estrela que explodiu anos antes continua chegando aos olhos da humanidade: a luz de Maybelle continua a passar pelas vidas de seus pais durante muito tempo depois de sua morte...

Um comentário: