Crítica
A Espuma dos Dias (L' Ecume des Jours / 2013 /
França) dir. Michel Gondry
por Lucas Wagner
O cineasta francês Michel Gondry possui
grande talento para desenvolver projetos com uma estética peculiar que, sempre
tendendo ao surrealismo, possuem certa dinâmica e excentricidade que enriquecem
suas obras. Nesse ponto, o diretor alcançou resultados visuais marcantes em
trabalhos como Sonhando Acordado (2005)
ou, especialmente, na obra-prima Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), seu melhor filme. Mas nesse seu
novo longa, A Espuma dos Dias, Gondry
consegue o trabalho visual mais fascinante de sua carreira até então, criando
uma obra cuja maior virtude está justamente na força de suas imagens que
conseguem realizar uma impactante transição no projeto: de comédia surrealista,
este passa a drama expressionista.
O roteiro do próprio Gondry com Luc Bossi,
baseado no romance homônimo de Boris Vian, conta a história de um casal
apaixonado e recém-casados, Colin (Romain Duris) e Cloe (Audrey Tautou).
Durante a lua-de-mel, Cloe contrai uma doença rara causada por uma planta que
passa a crescer em seu pulmão, o que mobiliza Colin, antes um bon-vivant, a buscar trabalho para pagar
pelo tratamento da esposa.
A
Espuma dos Dias se passa em um universo onde a lógica e a proporção não tem
lugar, e onde Gondry nos arremessa logo nos minutos iniciais, nos surpreendendo
com alimentos que se movimentam por vontade própria, um rato (um homem gordo
vestido de rato) que passeia e se diverte na casa de Colin, uma TV que interage
com o mundo externo, sapatos que agem como cachorros, etc. Dentro desse
contexto, Gondry abandona qualquer pretensão de sentido, e mergulha seu filme
na insanidade total, com uma trama de fundo que guia a projeção (Colin
conhecendo Cloe), mas mais focado no puro nonsense,
do qual ele consegue retirar uma dose absurda de humor bizarro que só ficaria mais
engraçado se assistido sob efeito de maconha. É impossível não pensar nisso nas
cenas de danças “bip bop” malucas onde as pernas das pessoas crescem
desproporcionalmente, ou na (genial) sequência envolvendo uma competição de patinação
no gelo. Além disso, as loucas invenções vistas ao longo do projeto são
divertidíssimas, como o “pianocoquetel” (piano onde o toque de notas cria
mistura de bebidas) ou os áudio-livros em forma de comprimidos.
Aqui, Gondry aproveita para brincar ainda
mais ao inserir certa metalinguagem no projeto que, de uma forma amalucada, é
bem sucedida ao ressaltar o caos de tudo: vemos diversos escritores, em filas,
escrevendo frases em máquinas de escrever que viajam de mão em mão,
continuamente, resultando na história que assistimos. Acertando ao não buscar
lógica nem em diálogos básicos, Gondry acaba, no entanto, errando ao inserir
uma subtrama envolvendo o personagem Chick (Gad Elmaleh) que não faz sentido
nem na falta de sentido do filme.
Felizmente, Gondry acerta a mão na hora de
trabalhar a relação entre Cloe e Colin. Apesar de, no roteiro, o romance dos
dois ser mostrado de forma resumida e atropelada, Gondry capricha ao filmar os
dois juntos com uma profundidade de campo reduzidíssima que embaça o fundo do
quadro, isolando-os em um universo particular. Os passeios bucólicos dos dois
também contribuem para esse sucesso e, principalmente, a sequência do
casamento, que acerta na poesia de mostrá-los como que “nadando” enquanto os
convidados estão andando normalmente.
Tal trabalho é importante para que o filme
faça aquilo que o faz ser ótimo e não só divertido: se transformar em um pesado
drama expressionista. A doença de Cloe e a preocupação de Colin só teriam
repercussão para o espectador caso nos importássemos com eles. E assim, a
mudança do longa é gradual, e Gondry vai encontrando maneiras geniais de fazer
essa transição. Observem como a casa de Colin e Cloe vai ganhando uma camada de
musgo, sujeira e podridão, talvez como representação da deteriorização do
pulmão de Cloe. Além disso, ambientes como o do hospital, escuros e podres, com
paredes descascadas e canos que cospem sangue, vão se tornando comuns.
Aliás, o design
de produção de A Espuma dos Dias é
simplesmente primoroso. O modo com a casa do casal vai se transformando em
quase uma mansão mal assombrada é assustador, onde os ambientes abertos e
simétricos vão dando lugar a ângulos estranhos e passagens estreitas. A
fotografia do longa também merece aplausos sinceros (além de uma indicação ao
Oscar) por começar a projeção optando por cores fortes e claras, coloridas, e
depois ir deixando a imagem quase monocromática, até chegar ao absoluto preto e
branco, numa representação clara do estado interno de destruição dos
personagens. O uso da violência também é curioso pois, se no início era hilária
(a citada cena de patinação no gelo), depois adquire conotação macabra (as mutilações
na fábrica). A própria trilha sonora, antes animada e esquisita, agora fica
opressiva.
E é conseguindo impactar tanto com essa
mudança de tom que Gondry é extremamente bem sucedido em derrubar até o mais
forte dos espectadores (e assim, a rima visual das duas cenas de Cloe demonstrando
estar sentindo mal adquire tom trágico quando percebemos não ser mais
fingimento). O humor vai sumindo gradualmente, e o clima de tragédia vai nos
dominando, até estarmos tão afundados naquela atmosfera de tristeza que nem percebemos
a mudança na hora, de tão bem feita que é.
Isso se deve muito à grande habilidade do
diretor de traduzir emoções em imagens. Assim, quando Colin recebe notícia pelo
telefone de que Cloe estava sentindo mal, as paredes ao seu redor começam,
literalmente, a se fechar; outro exemplo é ao percebermos que Nicolas (Omar Sy)
não apenas sente que envelheceu oito
anos em dez dias, mas literalmente
envelhece, com direito a cabelos brancos e rugas. E é por isso que A Espuma dos Dias consegue ser tão bem
sucedido ao transgredir a metalinguagem e colocar Colin como um dos escritores
da história (nas filas que comentei mais acima), desesperado para escrever mais
dela, mas impedido pela rotação caótica da mesma, que passa por diversas mãos em
questão de segundos, naquela que é a melhor cena da obra.
Com um elenco forte, A Espuma dos Dias é ainda mais eficiente. A bela Audrey Tautou nos
conquista novamente com seu charme e doçura, investindo numa performance
parecida com sua inesquecível atuação em O
Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001) para criar Cloe como uma criatura
apaixonante e sensível. Romain Duris representa muito bem a transformação de
Colin de bon-vivant charmoso
(ressaltando sua doce insegurança) para pura carne sustentada por ossos
destruídos pela depressão. Omar Sy repete o carisma de seu Driss no ótimo Intocáveis (2012) para criar o camarada
fiel Nicolas. E o próprio Michel Gondry acerta numa performance excêntrica e
divertida como o médico de Cloe.
Representando um retorno à boa forma de
Gondry depois do pavoroso Besouro Verde (2011),
A Espuma dos Dias é uma experiência
bizarra, alucinógena e insana que consegue nos abraçar no seu doce surrealismo
apenas para depois nos esmagar no mais grotesco expressionismo, resultando num
longa corajoso como poucos.
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