domingo, 5 de maio de 2013




Crítica O Abismo Prateado (O Abismo Prateado / 2013 / Brasil) dir. Karim Aïnouz

por Lucas Wagner

 Nosso cotidiano é repleto de tragédias pessoais, maiores ou menores, que constantemente nos desestabilizam o nos obrigam a procurar força para continuar a vida. Essas tragédias variam desde a morte de um ente querido até algo simples como ter tirado uma nota baixa. Para cada um, esses eventos adquirem um tom todo particular que é invisível à outros, já que só quem sente realmente sabe o que está passando. Assim, mesmo que outros digam compreender nossa dor ou desorientação não compreendem totalmente, mesmo já tendo passado por algo similar. Cada um de nós é um Universo único e amplo que, no entanto, só nós mesmos temos acesso total (e às vezes nem nós mesmos).

  Uma história de uma mulher cujo marido resolve ir embora, sem maiores satisfações, pode parecer, a terceiros, uma situação triste e irritante, mas não somos capazes de nos colocar no lugar dela, conscientemente, principalmente porque é algo que é ao mesmo tempo prosaico e distante (poucos de nós vivenciamos isso), e assim adotamos uma atitude mais indiferente. Em O Abismo Prateado, o ótimo cineasta Karim Aïnouz trabalha justamente as primeiras 24 horas de uma mulher, Violeta (Alessandra Negrini) depois que acabou de entrar numa situação assim, quando entra num estado de desorientação total que culmina em passeios à deriva pela noite do Rio de Janeiro, num caráter voyeurístico. No entanto, os 83 minutos de duração em que acompanhamos a tortura dela, se tornam uma tortura também para o espectador, já que Aïnouz usa o Cinema como uma ferramenta extremamente eficaz para nos mergulhar na dor de Violeta, fazendo com que, mesmo que apenas em pouco mais de uma hora, possamos experimentar algo que não é incomum no cotidiano, mas, no entanto, estamos sempre indiferentes.

  Usando poucos diálogos, Aïnouz usa imagens específicas e seu conhecimento de técnicas cinematográficas para atingir o espectador de forma mais direta e emocional, realmente nos colocando nos sapatos (ou botas) de Violeta. O excepcional design de som é, assim, uma das mais poderosas armas do diretor, que usa sons diegéticos (do ambiente) de forma impecável para traduzir estados emocionais específicos e sugerir diversas ideias. O momento em que Violeta recebe o trágico recado de seu marido pelo celular, por exemplo, é todo abafado pelo barulho ensurdecedor da cidade, assim como quando ela encontra uma amiga engenheira numa obra em construção, quando quase não ouvimos o diálogo, devido a barulhos típicos de um ambiente como esse em horário de pico. Nem precisaria dizer que esses sons traduzem, para nós, a agonia e desorientação de Violeta. Assim também é interessante que, no fim de tarde, o que reina é mais um silêncio opressor (inclusive o som do mar que ouvimos à distância é calmo), como se agora um pouco do desespero dela tivesse passado e ela estivesse sendo obrigada a encarar o vazio de sua casa. Mas o trabalho é ainda mais fascinante na sugestão de ideias, como quando ouvimos, abafadamente (já que Violeta está em um cômodo diferente), um insuportável funk, como se fosse o início de uma nova crise da personagem, e quando ela entra na sala em que a “música” está tocando, o barulho é terrível, como se nos mergulhando no novo ataque dela. Além disso, a ausência de uma trilha sonora original afasta um tom melodramático e meloso que poderia prejudicar o longa; aliás, qualquer música que aparece aqui vem com um objetivo e é sempre diegética e se expandem em significados maiores e mais complexos: observem o momento no táxi e na boate, quando tocam músicas românticas que, no entanto, continuamos ouvindo quando Violeta deixa o ambiente, como se aquelas músicas (agora com um ar tão nostálgico para alguém na condição dela) se fixassem em sua cabeça.

  Também, Aïnouz investe em diversos planos de longa duração, o que nos deixa ainda mais impacientes e inquietos (exatamente como Violeta está se sentindo), nos deixando a ponto de explodir. Assim, o plano sequência em que Aïnouz acompanha toda a trajetória da protagonista dentro de um elevador (até acima do décimo andar!) até o apartamento específico que procura, é de grande inteligência e eficácia, principalmente se considerarmos que estão reformando um dos apartamentos desse andar (com toda a barulheira que isso tem como consequência), o que, além do já enorme plano, serve como cereja do bolo no quesito desespero absoluto. A dor interna de Violeta é ainda bem representada pelos diversos ferimentos externos (no braço e na testa) que vai ganhando ao longo do filme. A de se observar também a inteligência de Aïnouz ao investir numa profundidade de campo reduzidíssima durante basicamente o tempo inteiro, o que isola a figura de Violeta ao tornar todo o seu redor embaçado, ilustrando assim a falta de “materialidade” desse mundo externo que perdeu o sentido quando a personagem se desestabilizou. A câmera sempre na mão, tremendo mais em momentos específicos, entrando e saindo de foco, garante ainda um tom de instabilidade constante, ficando ainda mais evidente quando o diretor adota, além de uma câmera nervosa, planos fechados que, junto ainda com a já comentada profundidade de campo reduzida, torna extremamente difícil para o espectador distinguir qualquer coisa que seja na tela, o que é exatamente o objetivo. E como não nos emocionarmos com o momento em que os faróis de vários carros em movimento parecem estrelas cadentes, pelo uso que o diretor faz de flares, ressaltando o caráter mágico e transformador desse momento específico (que se dá praticamente no fim do longa)?

  Se revela ainda uma surpresa agradável que Aïnouz use algumas dessas técnicas em relação à Djalma (marido de Violeta) também, já que sem isso poderíamos encará-lo apenas como um sujeito imprestável e egoísta que causou dor desnecessária à mulher. Logo na abertura do filme somos envolvidos pelo som ensurdecedor de um mar bravo (mar esse que, em outra parte desse texto, já foi comentado como sendo fonte de simbolismo), do qual, depois de algum tempo, Djalma sai e caminha, só de calção de banho, para sua casa, atravessando uma cidade grande na hora do rush insuportável, enquanto o diretor acompanha o personagem com a câmera na mão e em planos mais fechados. Nesses primeiros momentos já temos um desenho mais claro do estado psicológico em que se encontra o sujeito. Assim também é com o sexo que faz com a esposa (que, pelo jeito que Aïnouz filma, fica sufocante e desagradável, mesmo que estejamos vendo Alessandra Negrini nua) e outros simbolismos mais, como quando o vemos, nu, em sua casa, enquadrado em plano mais aberto, ressaltando o vazio, ou ainda quando beija a esposa através do vidro do boxe do banheiro. Alias, sem ser quando fazem sexo, os dois quase não são encontrados no mesmo quadro, o que ressalta a distância dos dois, que ele tanto vive e que, no entanto, parece não afetar Violeta.

  Mesmo que essa construção do mundo de Djalma seja perfeita, é mesmo em Violeta que O Abismo Prateado tem sua grande força, principalmente pela impecável performance da linda Alessandra Negrini. A expressividade da atriz no filme é de uma perfeição absoluta, já que dependemos muito dessas expressões para saber como ela está se sentindo no momento (como já disse, o longa conta com poucos diálogos). Assim, é de tirar o chapéu momentos como o que Negrini mostra a dificuldade de concentração da personagem quando tem que atender um paciente (ela é dentista) logo depois que receber o recado do marido. Também é eficaz a estratégia da atriz de interpretá-la como uma moça extremamente doce e delicada nos momentos pré-telefonema do marido, o que acaba ressaltando ainda mais a dor dela (e é um acerto que Negrini continue sendo doce assim mesmo durante seus momentos de dor, como quando ajuda a garotinha Bel no banheiro). A personagem em si possui um arco dramático bem escrito pelos roteiristas Beatriz Batcher e o próprio Aïnouz, já que colocam Violeta encontrando algumas figuras na madrugada do Rio de Janeiro que acabam, de uma forma ou de outra, ajudando-a na definição de seu caminho. Nesse sentido, quem mais merece créditos, é o jovem pai sem teto e sua filhinha, que acabam sendo vitais para fechar o arco dramático da personagem sem, no entanto, deixar que o longa perca o seu caráter de cotidiano, já que não presenciamos uma catarse de Violeta, mas apenas como aqueles dois indivíduos a afetaram, à sua própria maneira.

  Assim sendo, O Abismo Prateado não é um longa catártico repleto de emoções intensas. Bem, na verdade é sim repleto de emoções intensas, mas essas vem não de algo alienígena a todos nós, mas sim do comum, do prosaico. Podemos encontrar uma mulher como Violeta no nosso cotidiano, mas dificilmente poderíamos mergulhar em suas emoções e nos compadecermos dela como podemos fazer dentro de uma sala de Cinema.

Nota: 9,8 / 10,0

Nenhum comentário:

Postar um comentário