Crítica filme “O Voo” (Flight / 2012 / EUA) dir. Robert Zemeckis
por
Lucas Wagner
Robert Zemeckis passou cerca de uma década
envolvido apenas com animações no estilo de performance
capture, criando assim O Expresso
Polar, A Lenda de Beowulf e Os Fantasmas de Scrooge. Embora os dois
primeiros sejam bastante competentes, e o último seja deplorável, todos foram
péssimos no quesito bilheteria, o que fez com que o cineasta voltasse ao ramo
dos filmes em live-action (com atores
de carne e osso). E O Voo é o
primeiro longa de Zemeckis que marca essa volta e, mais do que isso, esse filme
é talvez o mais pesado na carreira de um cineasta mais acostumado a trabalhos
mais leves como ele (embora seu divertidíssimo A Morte Lhe Cai Bem tenha um humor negro bem acentuado), que aqui lida
com palavrões fortes e um tema polêmico e pesado, sem nunca desviar o olhar dos
aspectos mais sujos do mundo com que está lidando. No entanto, se O Voo possui uma temática complexa e
poderia ser um puta estudo de personagem, acaba sendo um filme bem menor, já
que o roteirista John Gatins demonstra imensa inexperiência e acaba tratando
tudo com grande unidimensionalidade.
Whip Whitaker (Denzel Washington) é um piloto
respeitado que está nessa profissão há bastante tempo. Só que ele possui um
grave problema com drogas e álcool, demonstrando imensa irresponsabilidade no
que se refere ao balanceamento das obrigações com a loucura de sua vida. Mas
tudo parece ir bem até que ele, com sua habilidade de piloto, salva 96 das 102
a bordo do avião em um acidente gravíssimo...só que ele fez isso drogado e
bêbado. Assim, começa o processo que pode definir se ele será lembrado como
herói que salvou 96 pessoas, ou como o assassino que matou 4.
Como estudo de personagem O Voo é uma grande bagunça incompetente.
Nunca realmente compreendemos Whip, nem mesmo de forma tácita. Quem é esse
homem? Quais são as variáveis que controlam seu comportamento (fora o
alcoolismo)? Gatins transforma essa figura tão ambivalente e potencialmente
complexa num ser unidimensional, que parece ser definido pura e simplesmente
pelo seu alcoolismo. E, mesmo dentro desse quesito, o roteiro peca pois o
personagem é tão mal desenvolvido que chega a dar pena (do roteiro, não do
personagem). No início, enxergamos Whip como um cara louco só que ainda assim
habilidoso que, embora tenha um estilo de vida autodestrutivo, isso não parece realmente
se colocar no seu caminho. Depois do acidente, se sente culpado, assim se
livrando de qualquer indício de álcool ou outras drogas em sua vida. Ainda
assim, se parece estar resolvido, logo se joga nesse mundo de novo de um modo
brusco e mal desenvolvido, iniciando um processo de altos e baixos em sua vida
que é comum para um alcoólatra, mas que se torna uma bagunça e não complexidade
de personagem, pois o roteirista o transforma num enorme enigma para o
espectador. Por quê, por exemplo, Whip tem a mania de sempre ir contra o
advogado Hugh Lang (Don Cheadle), que está engajado em ajudá-lo? Um personagem
ser complexo e contraditório é fascinante, mas para isso, mais do que tudo,
precisa ser desenvolvido com propriedade, para que possamos compreendê-lo, e
não servirmos apenas como espectadores da bagunça que é sua vida.
Também,
a incompetência de Gatins fica evidente no que se refere ao relacionamento de
Whip com sua ex-mulher e seu filho. Sabemos que esse relacionamento é
importante para compreendermos mais sobre ele, só que Gatins pouco dedica ao
desenvolvimento dessa relação, deixando mais para tratar disso nas etapas
finais do filme, de um modo que soa desesperado, como se tivesse esquecido de
trabalhar aquilo e, ao invés de reestruturar o roteiro, preferiu “acochambrar”.
Gatins ainda dedica um tempo enorme ao relacionamento de Whip com a viciada
Nicole (Kelly Reilly), que se inicia do nada e, para variar, é extremamente mal
trabalhado, servindo apenas, no fim das contas, como um recurso usado pelo
roteirista para deixar mais evidente a mudança de Whip, e que acaba não servindo
nem para isso, já que Gatins descarta a personagem a partir de certo momento da
projeção, não concluindo todo o processo que a personagem parecia ter iniciado
e também não fazendo jus a todo o tempo dedicado à “desenvolvê-la” no primeiro
ato, nos deixando com a seguinte dúvida: afinal, para quê essa personagem
existe mesmo? E o que dizer do fato de Gatins ser tão inexperiente a ponto de
criar um número excessivo de cenas inúteis, que não servem nem para mover a
trama, como aquela do diálogo de Whip, Nicole e um paciente com câncer terminal
numa escada? Fora que ainda tem toda a questão religiosa moralista que Gatins
tenta enfiar goela abaixo no espectador, o que, sinceramente, foi o que me
causou mais nojo.
Mas se ainda nos importamos com Whip e
torcemos por ele, a ponto de a cena final ganhar força e poesia, é porque
Denzel Washington é um ator fascinante, sem duvida um dos melhores da
atualidade. Washington luta com unhas e dentes para transformar esse O Voo em um estudo de personagem, se
esforçando para servir como um guia para o espectador para todas as tormentas
internas dele. O sofrimento e angústia dele acerca do seu alcoolismo são
palpáveis, assim como sua dificuldade em aceitar sua condição. Sua culpa e
fragilidade ainda são reforçados brilhantemente pelo ator a partir de detalhes
específicos: prestem atenção em como ele bate, nervoso, a bengala no chão em
certos momentos, ou, quando conversa com seu ex-co-piloto e treme a mão
esquerda, nervoso e exposto. Washington ainda confere força extra ao seu personagem
até mesmo no sentimental discurso que faz no terceiro ato. Assim, Whip quase se torna uma figura complexa e
fascinante, mas, assim como Day-Lewis foi castrado de transformar Lincoln num indivíduo realmente
tridimensional e complexo, Washington também sofre por incompetência de
terceiros.
No resto do elenco, ainda temos um Don
Cheadle e um Bruce Greenwood completamente no piloto automático (não, esse
termo não foi uma brincadeira de propósito), um John Goodman extremamente
divertido e brincalhão, e uma Kelly Reilly maravilhosamente linda (quem me
conhece sabe que tenho um fraco enorme por ruivas, ainda mais se tiver olhos
claros) que quase consegue transformar Nicole numa personagem tridimensional,
já que a interpreta com uma melancolia que surge doce e nostálgica, automaticamente
nos levando a nos preocupar com ela, embora, no fundo, seja uma péssima
personagem, por culpa do roteiro.
Mais contido do que de costume, Zemeckis
entrega uma direção mais focada na performance de Washington do que nas
brincadeiras técnicas que tanto adora fazer (lembrem-se de que esse é o diretor
de Contato, Forrest Gump, De Volta Para o
Futuro, etc). Mas ainda assim, o diretor confere um ritmo invejável à narrativa,
nunca deixando que esta se torne enfadonha, e ainda entrega um momento de puro
brilhantismo: a sequência do acidente. Com planos bem fechados (gerando
claustrofobia/angústia), inclinados (sugerindo instabilidade), câmera na mão
(instabilidade de novo) e cortes frenéticos (mas nunca frenéticos demais, afinal, estamos falando de um
diretor competente, e não de Michael Bay), o cineasta consegue alcançar uma
tensão impecável e insuportável, tornando esta a sequência mais memorável do
longa. E ainda é interessante ver um cineasta como Zemeckis dando uma de
Scorsese quando, por exemplo, um personagem cheira uma carreira de cocaína, e é
filmado em um close alucinado que
lembra diretamente aqueles vistos no inesquecível Os Bons Companheiros, de Scorsese. O único problema mais
identificável em sua direção é quando sente a necessidade de incluir uma trilha
melosa na bela cena final, como se ainda precisasse de algo a mais para nos
emocionarmos com ela.
Acabando sendo mais moralista do que parece
achar que é, O Voo é um longa regular
que, devido ao roteiro porco e inexperiente de Gatins joga fora a oportunidade
de ser um grande filme, não ficando, assim, do lado dos grandes trabalhos de
Zemeckis, como Contato (um dos
melhores filmes que já assisti), De Volta
Para o Futuro ou Náufrago,
estando mais para algo dispensável como Forrest
Gump, não chegando, no entanto, a ser algo terrível como seus Revelação ou Os Fantasmas de Scrooge. Mas gostei desse lado mais “rock n’ roll”
de Zemeckis, e espero poder vê-lo de novo, em algum filme melhor.
Nota: 5.7 / 10.0
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