sexta-feira, 2 de novembro de 2012



Resenha filme "Possessão" (The Possession / 2012 / EUA) dir. Ole Bornedal

por Lucas Wagner


  Na década de 1980, o cineasta Sam Raime (bem conhecido por ter dirigido a trilogia Homem Aranha) marcou presença com os fantásticos The Evil Dead e Evil Dead 2 (o terceiro também é dele, mas não é tão bom como os outros), filmes de terror que abusavam do trash, do grotesco, repletos de imagens fortes, maquiagens e efeitos mecânicos, além de um impecável humor negro que dava um charme todo especial. Isso tudo, acoplado à perfeita direção de Raime, fez com que esses longas se tornassem verdadeiros clássicos de terror, criando quase que um gênero próprio (com muitas idiossincracias que o distinguem do terror mais comum) que é muito apreciado por cinéfilos do mundo inteiro (inclusive eu). Assim, o nome de Raime se tornou quase que como um selo de qualidade nesse tipo de Cinema, principalmente quando um filme se propunha a seguir seus passos, ostentando orgulhosamente o nome do cineasta como produtor. Possessão é desse tipo, e foi justamente o fato de ter Raime como produtor que me levou a querer assistir o filme. E, de fato, o melhor do longa é que ele se entrega ao trash e ao exagero com muito orgulho (mas sem o humor negro), seguindo bem o que Raime fez em Evil Dead. Se, no entanto, tecnicamente, Possessão é fantástico e divertido, infelizmente no quesito narrativo o filme deixa muito a desejar, como comentarei abaixo.

  O longa conta a história de um pai divorciado, Clyde (Jeffrey Dean Morgan), que, em um final de semana com as filhas, Emma (Natasha Calis) e Hannah (Madison Davenport), acaba passando por um bazar de garagem, aonde Emma encontra uma estranha caixa a qual se torna estranhamente apegada. Com o passar do tempo, o comportamento da garota vai se tornando mais e mais esquisito e assustador, até que Clyde descobre que a filha está na verdade possuida por um demônio e que é apenas questão de tempo até que seja completamente consumida por ele.

  Primeira coisa patética, que não dá para negar, não importa suas crenças, é que esse filme não é “baseado em fatos reais”, embora sua campanha tenha insistido bastante nisso. É impossível; e o próprio exagero do longa já impede que o que acontece aqui seja no mínimo crível (o que não é um erro: é a proposta desse tipo de Cinema, como comentei no primeiro parágrafo). E mesmo esquecendo os exageros, a própria natureza do demônio foge completamente de qualquer base real no mundo contemporâneo (o que não é um problema; o problema é o filme querer apontar isso como algo real). Tem que ser muito ingênuo para achar mesmo que qualquer coisa vista aqui tenha de fato acontecido. Mas, pior do que isso, é como o roteiro de Juliet Snowden e Stiles White busca se basear 100% em clichês, ao invés de criar algo mais interessante e minimamente original. Cada mero passo que é dado, cada revelação, cada acontecimento, pode ser facilmente previsto pelo espectador que já tenha visto pelo menos dois filmes sobre possessões demoníacas.

  De todos os problemas advindos desses clichês, talvez o pior seja como os roteiristas desenvolvem seus personagens de forma extremamente tendenciosa e nada original. Já deve ser a milésima vez que um filme de terror usa a família desestruturada como centro da trama, e a milionésima que usa um pai dedicado com a filhinha perfeita em perigo (um exemplo bem recente é o fraco Intrusos). Observem como, desde o início, o roteiro já pinta Clyde como um cara gente boa, ideal, que vive melancólico pelo fim do casamento e por não poder passar muito tempo com as filhas. Os roteiristas tiram qualquer complexidade que poderia existir no personagem ao pintá-lo como vítima, inocente, não nos permitindo nem que saibamos o motivo do fim do seu casamento, já que isso poderia mostrar um lado ruim do sujeito e “impedir” que torçamos por ele. O que é uma grande prova da insegurança dos roteiristas, já que um personagem complexo, ambíguo certamente aumenta a imersão, já que ele seria uma figura bem mais real. Ao invés disso, Snowden e White preferem investir em completos estereótipos, pintando a ex-mulher de Clyde como uma mulher obviamente estúpida e ignorante, não sendo capaz nem de perceber os males que estão acometendo sua filha antes que isso seja absurdamente óbvio; o novo namorado dela é um sujeito “perfeitinho”; a filha mais velha, Hannah, é uma rebeldezinha chata pra caramba. E a garotinha possuída, Emma, é “desenvolvida” no início como um verdadeiro anjinho, amante de animais, vegetariana, boazinha, bonitinha, meiguinha, tudo maravilhosa, justamente para acentuar ainda mais a mudança que ocorrerá com ela. E a necessidade de escancarar todas essas informações sobre os personagens de maneira tão óbvia, para direcionar o espectador à uma visão forçada e tendenciosa sobre eles, prova a incrível falta de competência dos roteiristas, que não têm um mínimo de segurança para fazer um trabalho mais complexo.
   No entanto, o longa conta com excelentes atuações de Jeffrey Dean Morgan como Clyde, e Natasha Calis como Emma, que, se não conseguem tornar seus personagens em figuras mais complexas e reais, pelo menos lhes conferem uma força maior. Dean Morgan (conhecido por ser o Comediante em Wathmen – O Filme) busca deixar bem claro o amor e a dedicação que sente por suas filhas, além de o profundo pavor que sente ao perceber que uma delas está enfrentando grande perigo, o que é importantíssimo para que o clímax funcione; é impressionante como Dean Morgan emprega uma cadência de voz mais rouca e tensa em momentos chaves quando está completamente apavorado com o que está acontecendo. Já Natasha Calis se revela uma atriz incrivelmente promissora, sendo extremamente eficiente ao conferir uma maior dimensão ao sofrimento e confusão de Emma, se mostrando especialmente genial nas lágrimas que solta em determinados momentos, em que está sendo obviamente controlada pelo demônio, tem consciência disso e, no entanto, não pode fazer nada.
   Mas, se vale a pena assistir Possessão isso acontece principalmente devido à direção de Ole Bornedal. Embora tirando muita coisa dos trabalhos de Raime em filmes de terror, Bornedal surpreende por ir desenvolvendo com calma os acontecimentos advindos da possessão, não pulando rapidamente do sutil para o absurdo. Mas há sempre uma atmosfera tensa, algo deixado bem claro pelo cineasta em sequências em câmera lenta e som abafado, quando não parece estar acontecendo nada demais, mas existem para nos deixar sempre cientes de que algo macabro está para acontecer. Além disso, Bornedal se diverte demais nas cenas de terror propriamente dito, se inspirando 100% nos filmes de terror mais antigos, principalmente da década de 80, nos trabalhos de Raime, ao investir no exagero e no grotesco de forma bem clara, não dosando a mão em quase nenhum momento, nem na cena de abertura, quando presenciamos um acontecimento particularmente doloroso e assustador. Sem usar muita maquiagem ou efeitos mecânicos como antigamente, pelo menos Bornedal não comete o mesmo erro de Raime em Arraste-me Para o Inferno (outro bem estilo “terror anos 80”) onde os efeitos visuais completamente digitais criavam uma estranheza desconfortável por sua óbvia artificialidade de computador, e tiravam grande parte do charme, e aqui em Possessão, Bornedal foi feliz com efeitos especiais que, mesmo digitais, estão impecáveis e que dão aparência de realidade, nunca causando o desconforto que comentei. Os únicos problemas na direção são mesmo mais no primeiro ato, quando o cineasta investe em sequências de “terror” que revelam que o que estava causando medo era na verdade um animalzinho qualquer.
   Não dá para não comentar a fotografia de Dan Laustsen, que cria imagens belas e assustadoras (uma, em especial, me impressionou muito, em que vemos Emma iluminada apenas por um sinal vermelho de “saída” num hospital), e a fantástica trilha sonora de Anton Sanko, que remete diretamente aos terrores de antigamente, com tons fortes e impactantes, que são usados com maestria por Bornedal para influenciar a atmosfera do longa (meus momentos favoritos é quando um tom de piano acompanha um fade-out, algo que acontece várias vezes), e de vez em quando lembra até a inesquecível trilha que John Williams compôs para Tubarão.
   Prejudicado fortemente pelo roteiro, Possessão é um longa ainda assim divertido que me faz imaginar o que Ole Bornedal poderia fazer caso estivesse trabalhando com um roteiro melhor. E mesmo que não seja o melhor terror do ano, com certeza fica acima de maioria, se lembrarmos que a maioria consiste em atrocidades como Chernobyl, Resident Evil: Retribuição, Mulher de Preto e Filha do Mal. Me diverti...

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