Resenha filme "Na Estrada" (On The Road / 2012 / França, Brasil, EUA, Reino Unido) dir. Walter Salles
por Lucas Wagner
On The Road, de Jack Kerouac, é um dos livros mais maravilhosos que eu já li. Completamentge irresistível em seu ritmo louco e poético, On The Road transborda energia, vitalidade e um senso de liberdade magnífico. Seus personagens são livres, selvagens, loucos e apaixonados pela vida, e buscam mais e mais uma existência mais plena através do simples ato de viver. Kerouac, dando vida à Geração Beat, é glorioso ao trazer ao seu livro idéias que trazem a energia, a loucura, a ferocidade de poder viver uma vida plena, chegar a uma Felicidade genuína, encrustada no mais profundo do espírito humano. Ahh, como é delicioso acompanhar seus personagens discutindo até o amanhecer, arte e coisas prosaicas (mas mágicas) da vida humana; como é bom vê-los abrindo mão de uma existência "correta" para encontrar conforto em uma idéia de felicidade mais simples mas não menos bela, através do simples "curtir"; como é bom vê-los atravessando o país simplesmente para poder curtiruma pessoa, aproveitar tudo o que essa pessoa tem de bom. Mas Kerouac é ainda mais genial ao contrapor essas idéias de felicidade com as barreiras impostas pelo mundo, sob a forma de dinheiro e responsabilidade. E como Kerouac foi brilhante ao colocar seus personagens comentendo atos que certamente não são muito "corretos", mas que são até mesmo perdoáveis já que compreendemos tão bem sua fome pela vida. É por isso, e por muito mais, que eu amo On The Road.
Também sou completamente apaixonado pelo trabalho do diretor brasileiro Walter Salles. Cineasta sensível e realista, Salles é dono de uma filmografia praticamente impecável, possuindo um grande gosto por road movies, como os seus inesquecíveis Central do Brasil, Diários de Motocicleta e Terra Estrangeira. Mas, mais importante que isso na carreira de Salles, nota-se uma outra temática que o fascina: a formação da identidade. Isso fica bem claro tanto nos seus filmes já citados, quanto no seu excelente terror Água Negra e no ótimo Linha de Passe. Talvez tenha sido isso que o interessou tanto em On The Road (livro que o cineasta leu aos 18 anos e se apaixonou): a possibilidade de trabalhar a formação de identidade de uma geração, junto com todas as barreiras que vieram com isso.
Além disso tudo, esse Na Estrada é escrito por Jose Rivera (que colaborou com Salles em Diários de Motocicleta), possui um elenco fenomenal, e tem a fotografia do sempre excelente Eric Gautier (de Diários de Motocicleta e Na Natureza Selvagem). Então, era praticamente impossível para alguém como eu não criar grandes expectativas quanto a esse filme. No entanto, odeio dizer isso, mas o resultado é... decepcionante. Com um roteiro horrível, uma direção falha e inconstante de Salles, problemas gravíssimos de ritmo e verdadeiras atrocidades cometidas contra o material original, Na Estrada é um filme inegavelmente ruim.
Se Salles acerta em alguns pontos, muitos desses se referem a aspectos visuais do filme. Salles e Eric Gautier (que, como eu disse, é o diretor de fotografia) foram felizes ao filmar tanto imagens de aspectos mais grandiosos da paisagem dos EUA, quanto também consegue encontrar beleza em imagens mais prosaicas (como em uma estrada congelada pela neve), ao mesmo tempo em que não vira os olhos da câmera para a pobreza de certas regiões e de certos "pedrestes" que cruzam o caminho dos protagonistas. A direção de arte faz um bom trabalho na recriação de ambientes e cidades das décadas de 40/50, demonstrando a beleza clássica desse época, ao mesmo tempo em que cria ambientes menos "impressionantes", caracterizados por maior pobreza, como o apartamento de Sal Paradise (Sam Riley) ou a casa de Old Bull Lee (Viggo Mortensen). Também no figurino enxergamos essa mesma estratégia visual, de contrapor o bonito com o mais prosaico, e as vezes, até mesmo feio, quando podemos ver pessoas vestindo-se elegantemente, como o "viado velho" (Steve Buscemi), elegante com seu terno bem cortado e seu chapéu, ao mesmo tempo em que vemos pessoas, tais como Dean (Garrett Hedlund) e Sal, vestindo roupas mais gastas e sujas.
Também Salles, como cineasta competente e sensível, é capaz de impressionar pelo modo como, de vez em quando, parece prestar atenção aos sentimentos de certos personagens, como quando vemos Carlo Marx (Tom Sturridge) com lágrimas nos olhos ao escutar as reflexões de um amigo numa madrugada, ou ainda em relação à Marylou (Kristen Stewart), quando Salles muitas vezes se detém em longos planos do rosto da moça, quando podemos perceber, através de seus olhos e suas expressões de contida dor, como ela sofre devido a sua paixão nada saudável por Dean. Ainda é interessante uma das primeiras vezes em que Salles filma Old Bull Lee, quando Sal, Dean, Marylou e Ed Dunkel entram em sua casa: vemos Bull Lee dormindo numa cadeira, segurando carinhosamente um filho seu em um braço, enquanto o outro se encontra estendido e descoberto, revelando diversas marcas de picadas de agulha, devido ao uso constante de heroína pelo personagem.
Porém, os acertos de Salles acabam basicamente por ai. Como eu disse antes, o longa possui graves problemas de ritmo, sempre saltando no tempo, e sempre variando bruscamente entre um ritmo mais agitado, "explosivo", e um mais contemplativo, mas nunca encontrando um equilíbrio entre os dois, como seria desejado. Muitas vezes, Salles salta de uma cena agitada de uma festa, para uma parada, quieta, sem preparação alguma. Sim, eu compreendo que isso pode ter sido fruto de uma idéia do cineasta de contrabalancear a existência desenfreada dos personagens nas festas, com aquelas passadas em um ambiente mais "real", mas ainda assim, a impressão que fica é de falta de cuidado na hora dessas transições, que são repetidas a exaustão, e contribuem para o filme ficar ainda mais parado (sensação que NUNCA existia no livro), e faz o filme parecer mais longo do que já é. Os problemas de ritmo pioram ainda mais na segunda metade do filme, quando que parece que o que vemos é mais uma sequência de cenas vazias de significado ou qualquer relevância narrativa, mostrando uma série de eventos desinteressantes da rotina dos personagens.
Mas os maiores problemas são encontrados no roteiro. Salles e Rivera parecem não conhecer a obra como acreditam que conhecem, e assim despedaçam o livro sem qualquer respeito, sempre tentando reduzir o tempo de duração, desenvolvendo assim porcamente situações que tanto enriqueciam o trabalho original. Por exemplo: o romance entre Sal e Terry (Alice Braga). Enquanto no livro este era desenvolvido com cuidado, aqui no filme Salles e Rivera saltam da cena em que os dois se conhecem em um ônibus, para uma cena em que eles moram e trabalham juntos para, em menos de cinco minutos depois, descartar Terry do filme, abandonando-a definitivamente. E, em um dos elementos que o filme mais me magoou: Old Bull Lee. Este era o personagem mais fascinante do livro; um professor que "constantemente aprendia", adotando a "vida como escola". Sua passagem no livro é uma das melhores, repleta de reflexões profundas e interessantes (enquanto ele mesmo era um personagem interessante), ao passo que aqui no filme ele simplesmente não exerce função alguma, não dizendo nada de interessante, parecendo mais interessado em simplesmente se drogar, reclamar de Dean e brincar com sua pistola. E o que dizer da viagem ao México? Enquanto no livro está era repleta de poesia e voyerismo reflexivo, aqui ela surge tão curta, tão reduzida, tão "enxugada", que perde qualquer beleza que possui no livro, e assim perde qualquer função narrativa também. Além disso, Salles e Rivera somplesmente descartam passagens pequenas mas riquíssimas, que caberiam perfeitamente no longa, como aquela em que Sal e Dean travam uma conversa fascinante sobre um casal sentado à sua frente em um carro, e que, é claro, for cortada no filme. Eu poderia citar mais inúmeros exemplos, mas já ficou claro o óbvio desrespeito (ou falta de compreensão) dos realizadores com a obra original. Aliás, a maneira brusca e desleixada com que o roteiro trabalha as situações do livro tornam o filme até mesmo confuso, já que nunca compreendemos bem o porque os personagens fazem algo, porque estão indo a determinado lugar, etc.
Esse desrespeito afeta ainda o desenvolvimento dos personagens principais, principalmente Dean Moriarty. No livro este é um personagem fascinante e complexo, possuindo uma imensa fome de viver, de sonhar, de ser feliz. Ele vive mergulhado na própria loucura, uma loucura baseada no seu espírto desesperado por querer tudo ao mesmo tempo. Dean é um sujeito que encontra beleza em tudo, em todos, que se enche de alegria ao simplesmente ver uma paisagem bonita ou ver como uma saxofonista toca bem, ou ainda quando vê uma garota bonita. Ele se encontra feliz em simplesmente VIVER, em fazer parte da beleza que é a existência em si. Mas ele não é só maravilhas. Claramente irresponsável, Dean constantemente abandona sua mulher e seus filhos, os deixando á mercê da sorte, para simplesmente mergulhar em mais uma longa jornada na estrada, para encontrar mais beleza no existir. Além disso, se quando era um adolescente vivia rodeado de discípulos e era visto quase que como um deus pelo seu modo de ser, de enchergar a vida, quando mais cresce (e também crescem seus amigos), passa a ser visto como um irresponsável egoísta e imaturo. Mas o máximo que ele consegue fazer é rir, já que, embora sofra imensamente por ele mesmo se ver como irresponsável, não consegue negar essa sua natureza e resitir a tentação de viver de forma mais plena e livre. Nada dessa beleza e complexidade desse personagem é encontrada no filme. A áurea de mistério que o envolve no livro, tranformando-o em uma criatura quase mística, é falho aqui. Ele nunca parece algo realmente especial, nunca parece exercer verdadeira influência sobre outras pessoas, nunca parece ter essa fome irresistível pela vida e nem parece sofrer com o peso de sua prórpia irresponsabilidade. Ele parece um personagem neutro, extremamente unidimensional, apenas um babaca louco (no sentido de demente e pervertido, dessa vez). E isso não é culpa de Garrett Hedlund, que é carismático e talentoso, mas é culpa do roteiro, que mata todo o potencial desse personagem apartir da maneira porca como é escrito.
Com Sal Paradise não é muito diferente. Para ser sincero, ele começa como um personagem muito interessante. Aliás, o filme começa muito bem. O longa começa estabelecendo sua vida como tediosa e o mostra deprimido diante da falta de experiências de vida que o enriqueceriam tanto como escritor quanto como ser humano. E é isso que o impulsiona em sua jornada pelos EUA. Mas também pára por aí. Apartir de certo momento o personagem estagna e se torna quase um fantasma, não sendo mais desenvolvido psicologicamente. Alem disso, um dos grandes problemas do filme reside na falta de química no relacionamento de Sal e Dean. No livro esses viviam sempre conversando, empolgados com tudo a sua volta, sempre admirando tudo, tão animados que mal paravam quietos. Mas aqui, o relacionamento dos dois é tão desanimado, tão sem graça, tão sem energia ou empatia, que fica impossível para o espectador compreender no final do filme quando Dean diz que sempre amará Sal.
Mas o pior de tudo é mesmo a completa destruição da atmosfera do livro, de suas idéias e ambições. Lá, nós encontrávamos uma energia contagiante, um estilo de vida próprio, banhado em uma radicalidade pacífica baseada no simples prazer de viver, de deapego material, de encontrar alegria em tudo ao seu redor. Os personagens do livro possuem uma fome insaciável de viver e de sonhar, querendo tudo ao mesmo tempo, enxergando beleza em coisas simples, como até mesmo no suor que se junta na testa de uma índia ou de conhecer uma nova pessoa interessante. Esses personagens querem encontrar uma forma de Felicidade pura baseada no mais profundo da existência, do espírto humano. Porém, o mundo é um lugar cruel, que castra as pessoas de viverem plenamente, sempre construíndo barreira como dinheiro e responsabilidades. Mas os personagens não conseguem evitar ir contra as regras desse mundo, muitas vezes sofrendo por quebrá-las, enfrentado dificuldades imensas. Nada disso é visto no filme. Não encontramos aqui nem a menção das idéias e reflexões do livro. Nada. E as dificuldades pelas quais os personagens passam são extremamente mal trabalhadas, muito fracas e inocentes se comparadas ao livro, não permitindo que o espectador sinta e compartilhe a dor deles. Porra, nós não conseguimos nem mesmo torcer por eles, já que parece que suas dificuldades não são reais. Na Estrada é, para ser sincero, um filme completamente apático, incapaz de despertar qualquer tipo de emoção ou reflexão forte.
Ainda, mesmo com um elenco excepcional, o roteiro não permite que os atores alcancem todo o seu potencial. O grande Viggo Mortensen tenta transformar Old Bull Lee na figura complexa e fascinante que ele é, mas é completamente sabotado pelo roteiro. Amy Adams não pode fazer nada para transformar sua personagem em uma figura minimamete interessante. Alice Braga é castrada de qualquer possibilidade de transformar Terry em alguém interessante, devido ao curtíssimo e mal aproveitado (pelo roteiro) tempo de sua presença em tela. Terrence Howard... bom, eu não faço idéia do por que ele está aqui. Tom Sturridge transforma Carlo Marx em uma figura inegavelmente "afetada" e unidimensional, enquanto no livro ele enfrentava problemas existenciais mais sérios e complexos. Mas alguns conseguem fazer um pouco com o pouco que tem: Kirsten Dunst tranforma Camille uem uma personagem mais interessante até do que no livro, já que aqui ela não é só antipática, mas possui uma tragetória interessante de mulher doce e apaixonada, para alguém triste e cansada. Steve Buscemi está ao menos divertido como o "viado velho". Já Kristen Stewart está surpreendentemente boa, demonstrando com força a sua paixão obsessiva por Dean, e como sofre por isso, ao mesmo tempo em que se revela extremamente sexy (e Stewart merece créditos pela coragem demonstrada em diversas cenas de nudez, sexo e masturbação, algo raro para uma atriz "teen" como ela).
Chato, longo e apático. Esse é Na Estrada de Walter Salles. Um filme que desperdiça as maravilhosas oportunidades de narrativa para se tornar uma experiência maçante que parece ter como maior ambição a simples (e mal feita) reprodução de cenas do livro. Não é, de jeito nenhum, a adaptação cinematográfica que a obra prima de Kerouac merecia. Esse poderia ser um dos melhores filmes de 2012, mas, infelizmente, é um dos piores. E o engraçado é que, se me perguntassem qual diretor eu escolheria para dirigir On The Road, Walter Salles estaria como um dos meus favoritos.
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