Crítica:
Mad Max: Estrada da
Fúria
(Mad Max: Fury Road / 2015 /
Austrália) dir. George Miller
por
Lucas Wagner
Mad
Max – Estrada da Fúria é um filme cujo vilão carrega uma
banda de heavy metal em seu comboio
para manter uma escala épica em sua empreitada. Só isso bastaria para
classificar o longa como algo único, ou no mínimo, peculiar. Mas essa volta de
George Miller à franquia que fez dele um cineasta e de Mel Gibson um astro de ação
ainda vai muito além, e se transforma em um verdadeiro Hosana à loucura.
Funcionando tanto como reboot quanto continuação da franquia, Estrada da Fúria atualiza os “motivos
pra insanidade” adicionando a escassez de água e alimentos à falta de petróleo,
potencializando o comportamento primitivo/instintual dos protótipos de humanos
que habitam aquele universo. E Miller segue a lógica que foi criando ao longo
da franquia, de aumentar, a cada capítulo, o absurdo daquele mundo, mas aqui
vai bem além de um ou dois elementos insanos a mais, e atola seu filme de situações
e personagens completamente fritos, desde os soldados “meio-vivos” que usam
humanos como bolsas de sangue (sendo que esses ainda tem as informações sobre
seu tipo sanguíneo tatuadas nas costas), passando pelas gírias envolvendo
cromo, até a idolatria do modelo de motor V-8, que ganha contornos ainda mais
exaltados na perspectiva daqueles indivíduos de, quando mortos, partirem para o
paraíso de Valhalla que, não por acaso tem a inicial “V” e oito letras, ao todo.
E é por uma construção visual
minuciosa que Miller e seu designer de
produção, Colin Gibson, conferem uma riqueza ímpar à sua narrativa, com
diversos elementos feitos de ossos misturados com objetos de metal, uma
fortaleza grandiosa que reflete a grandiloqüência de seu vilão (e interessante
que a “sacada” de onde fala parece a boca de sua máscara), que ainda tem um harém
que mais parece uma enorme gaiola, apenas mais uma parte funcional de uma simulação
de império que conta ainda com ordenha de mães (sério) e hortas. Mais curioso
ainda talvez sejam os carros, esses os elementos primordiais de qualquer Mad Max, e que aqui assumem diversas
modalidades de misturas de carcaças de outros automóveis, às vezes parecendo
porcos espinhos e outras até mesmo carros de luxo acoplados a tanques, sem
esquecer, é claro, da citada banda de heavy
metal que tem um carro completamente adaptado às suas necessidades. As
tribos vistas também ganham uma diversidade maior, e Miller tem a criatividade
de, mesmo de relance, apresentar modalidades de sobreviventes tão peculiares
como aqueles que vagam pelo deserto enlameado como gazelas em pernas de pau. Interessante
notar ainda o descompromisso de Miller com o politicamente correto ao usar
formas físicas de alguns personagens deformados para causar uma evidente sensação
de desconforto no espectador, ao passo que ele mesmo é inteligente ao se
adaptar a contextos sociais atuais e tirar as mulheres de seu papel de meros
figurantes ou, no máximo, coadjuvantes, como tinham nos anteriores, e aqui as
colocar como figuras fortes e independentes, se revoltando contra uma cultura
machista.
Aproveitando que citei
as mulheres, Charlize Theron se destaca com facilidade como a personagem mais
intensa do filme, a Imperatriz Furiosa, capaz de se entregar a acessos de ódio
que a tornam uma máquina mortal, mas trazendo sempre uma voz serena, triste
como seu semblante tradutor de uma história trágica, numa gama de emoções que
Theron equilibra com maestria, chegando a dividir com o próprio Max o papel de
protagonista. Falando nele, Tom Hardy pode não ter aqui o carisma de Gibson,
mas manda bem ao compor um personagem tão auto-centrado e solitário que a maior
parte das falas parecem monólogos resmungados, enquanto Nicholas Hoult mais uma
vez demonstra a capacidade de explorar ao máximo um personagem coadjuvante. Ah!
E, claro, Melissa Jafer, com quase oitenta anos, expressa um vigor incrível e
uma capacidade admirável de descer o cacete.
Trazendo como centro
absoluto as sequências de ação, Miller se entrega a exageros deliciosos no
crescendo de absurdo ao qual se propõe, tanto de forma mais grotesca (a
tempestade de areia) como em elementos mais moleculares, embora igualmente
geniais, como o guitarrista que insiste em seu solo mesmo sob porrada. Acaba
que Estrada da Fúria, com sua trama
simples e focada nas possibilidades de ação, vai ganhando uma energia frenética
ao ponto da taquicardia, com Miller se dando o direito de explorar a sensação de
um frame rate mais baixo que se traduz
na experiência de movimento acelerado dos personagens, o que confere um sabor
diferente, estranho a princípio, mas gradualmente mais empolgante, inclusive
funcionando na montagem fluída que consegue coadunar as alucinações de Max com
suas porradarias (e a sequência de ação na caverna, no início, por isso mesmo
acaba ganhando um caráter de pesadelo). É um filme tão confiante nesse seu
propósito de chutar bundas, que se permite o direito de construir ação sem que
a vejamos, e ainda mostrar, sem o mínimo peso na consciência, personagens
saindo tranquilos de acidentes horríveis, tudo isso colorido pelas tonalidades
fortes da fotografia de John Seale, que aqui promove diversas experimentações em
busca de tons belos, tanto com o sol árido como com a noite azulada com focos
de faróis que conferem um efeito bem bonito.
Filme puro em sua
proposta de funcionar como um verdadeiro exercício de insanidade, Estrada da Fúria talvez seja o melhor
filme da franquia, mesmo comparado com Guerreiro
da Estrada. A intensidade que alcança, assim como o compromisso declarado
com o nonsense, conferem um valor
único a uma produção que alcança estágios raros na fritação.