Crítica:
O
Ano Mais Violento
(A Most Violent Year / 2015 / EUA)
dir. J.C. Chandor
por
Lucas Wagner
É curioso que, mesmo
divergindo em praticamente todos os aspectos, este O Ano Mais Violento possua uma essência similar àquela do filme
anterior de J.C. Chandor, Até o Fim:
ambos tratam de homens lutando por sua integridade (física e/ou psicológica) enquanto
sofrem constantes ataques de seus ambientes. Mas, enquanto no longa anterior
víamos Robert Redford batalhando por sua vida enquanto à deriva no mar, aqui o
protagonista interpretado por Oscar Isaac é levado aos seus limites
psicológicos para conseguir manter sua integridade moral em um meio corrupto e
corruptor. Uma prova de habilidade de Chandor de trabalhar um centro temático
dentro de enredos absolutamente distintos.
Se passando em Nova
York no ano de 1981, considerado o mais violento da História da cidade, o
roteiro de Chandor acompanha o dono de uma companhia de distribuição de
combustível, Abel Morales (Isaac), que, às vésperas de fechar uma promissora
compra de uma propriedade, começa a enfrentar diversos eventos estressores que
ameaçam colapsar tanto o seu negócio quanto a transparência ética e moral que
busca manter em sua profissão. Assim, Morales é obrigado a lidar com uma
investigação de seus negócios, um processo legal, caminhões de combustíveis
sendo roubados, competidores gananciosos, discordâncias da esposa quanto ao
modo como lida com a empresa, e ainda um empregado que reagiu a um roubo de
caminhão e escapou, inadivertidamente sujando o nome da companhia.
Demonstrando esmero na
reconstrução do período histórico, O Ano
Mais Violento aposta numa montagem com planos longos e movimentos de câmera
lentos, angustiando o espectador, além de utilizar aspectos do ambiente para
fins de construção de atmosfera, algo que o diretor de fotografia, Bradford
Young, entende muito bem ao usar predominantemente tons sépia e sombras na
composição dos planos, emulando tensão e diversos aspectos obscuros dos
personagens e situações, ao passo em que as cenas externas cobertas pela neve e
lama contribuem para uma sensação de melancolia que coaduna com a trilha sonora
de Alexander Ebert ao buscar ressaltar um sentimento de solidão (como fez em Até o Fim) que isola ainda mais Abel em
suas lutas, um isolamento que ecoa nos planos abertos que Chandor utiliza em
momentos específicos para filmá-lo. E se esse isolamento é foco, a sensação de
estar encurralado é alcançada pelo diretor quando filma diversos personagens em
planos onde esses aparecem nos cantos extremos dos quadros, numa composição
desequilibrada por demais incômoda.
Tais sensações
desconfortáveis, até angustiantes, buscadas pelos realizadores não são menos do
que adequadas ao projeto, que se trata de um homem “íntegro” sendo testado até
os limites de suas posições ideológicas. Afinal, Abel se orgulha de (como
acredita) ter crescido profissionalmente com seu próprio esforço, sem recorrer
à ajuda criminosa ou atalhos nas leis para tal, galgando degraus de ser um
“mero” motorista de caminhão para se tornar uma figura tão forte e admirada. E,
de todas as maneiras possíveis, Abel parece buscar manter essa persona de sucesso, desde o uso de uma
indumentária elegante e por vezes imponente, até ao evitar usar sua língua
original (o espanhol) durante a maior parte do tempo, como se desfazer-se de
sua identidade como imigrante fosse parte essencial de uma imagem bem sucedida.
Mesmo sob essa perspectiva, é bacana observar como o homem se mantém gentil com
seus funcionários e colegas, buscando encorajá-los ao mesmo tempo em que não
raro faz uso de afirmações verbais sobre enfrentamento de dificuldades e ser
capaz de crescer por si mesmo sem perder a integridade moral.
Assim, vê-lo sofrendo
baques cada vez mais fortes que parecem querer forçá-lo a atitudes que condena
(ao mesmo tempo em que assumir uma postura criminosa enquanto sofre uma
investigação não seria sábio), e ainda sofrer conseqüências de atitudes
impensadas por parte de terceiros (como o empregado que reage ao assalto),
parece fazer com que cada plano de ação pareça fútil, e que circunstâncias
agressivas e incontroláveis aparecerão de qualquer maneira. Ainda, seu
comportamento moral parece ser constantemente repreendido, mesmo por sua
mulher, Anna, como sendo algo um tanto quanto pueril, ao mesmo tempo em que
talvez seja justamente essa postura de integridade moral que faz com que Abel
receba apoio e admiração mesmo por parte daqueles que querem derrubá-lo.
E se citei Anna, vale
dizer que o seu relacionamento com o marido é um dos aspectos mais curiosos do
projeto. Interpretada pela linda Jessica Chastain com uma postura sempre
altiva, reforçada pela indumentária colada que ressalta sua imponência ao
desenhar sua volumosa figura corporal (sem falar nos generosos decotes estrategicamente
usados), Anna parece ao mesmo tempo olhar o marido como um filhote de cachorro
que não sabe bem como sobreviver a um mundo selvagem e com um carinho e amor
talvez atribuídos justamente a essa “inocência” de Abel. Aliás, vindo de uma
família de criminosos, não surpreende que essas características de Abel possam
vir como um respiro, apesar de Anna constantemente apresentar a possibilidade
de recorrer a seus familiares para ajudá-los. Mais importante é como Anna
compreende a postura do marido e, se muitas vezes bate de frente com suas
visões, outras apenas o consola com afeto, mas nunca demonstrando o menor sinal
de fraqueza (atentem para o momento em que limpa os olhos molhados depois de
segurar as lágrimas em uma intensa briga com o marido). Interessante, aliás,
que a residência do casal traga um equilíbrio entre suas personalidades: a
ostensividade do imóvel e a porta de cor azul (atribuída aos figurinos de Anna)
dividem lugar com as vidraças constantes que representam a transparência de
Abel.
É fascinante, aliás, o
cuidado com que Chandor filma o casal. Estabelecendo bem sua dinâmica na cena
em que atropelam um animal e tomam atitudes dissimilares em relação a isso,
Chandor apresenta o mesmo minimalismo que tanto enriqueceu seu projeto anterior
ao demonstrar precisão em planos atentos a detalhes em suas reações. Quando
Abel demonstra, simultaneamente, imponência e gentileza em sua fala dirigida a
executivos de bancos, Anna dá um sorriso de orgulho, enquanto um sorriso
parecido aparece logo após demonstrar um pragmatismo muito diferente do marido
em um momento específico, quando parece sentir ter mostrado “quem tem razão”.
Além disso, a mise en scène desenvolvida
pelo diretor e o elenco é certeira em gestos discretos mas reveladores, como os
olhares de canto de olho divididos entre Anna e Abel, demonstrando uma parceria
tácita e uma “leitura de pensamentos” digna de um casal íntimo, intimidade essa
ressaltada pelo conforto físico que parecem sentir um com o outro, em brincadeiras
descontraídas ou gestos de carinho isolados. Essa inteligência da mise em scène pode ter ênfase no
tratamento ao casal, mas se expande para demonstrar aspectos sutis de muitas
relações, com destaque para o momento em que o advogado Andrew Walsh (Albert
Brooks) coloca a mão no ombro de Abel quando se dirigem a uma reunião
possivelmente estressante, como se demonstrando companheirismo mas também uma
tentativa de acalmar Abel, que poderia agir explosivamente nessa situação.
Mas, de tudo, talvez o
mais surpreendente quanto a O Ano Mais
Violento diga respeito à maturidade do roteiro de Chandor no tratamento
daquele universo e seus personagens. Sim, Abel pode ser moralmente admirável,
mas muitas vezes seus atos denotam certa inocência, e uma descoberta específica
no fim do terceiro ato (que não revelarei aqui, é claro) representa um golpe
certeiro quanto ao modo como via seus negócios e seu sucesso (aliás, será o
nome do personagem mera coincidência com o irmão de Caim?). E, se Anna já
aparece como uma figura ambígua, todos os outros personagens adquirem
personalidades multifacetadas que fogem de estereótipos facilmente atribuíveis.
O procurador local, por exemplo, poderia ser um perfeito exemplo de vilão, mas
aparece como uma figura gentil que está apenas fazendo seu trabalho, ao passo
que ladrões demonstram receio em travar um tiroteio pelo perigo de ferir civis,
e os concorrentes de Abel nunca são abertamente hostis (e às vezes nem
encobertamente), e mesmo executivos de banco podem demonstrar uma assertividade
e bondade raras nesse ramo. Se esses personagens agem de forma “repreensível”, não
é por serem maus, mas por estarem fazendo o “necessário” para sobreviver em um
meio tão aversivo como aquele.
Não é a toa que um dos
melhores planos do filme traga sangue e combustível em um mesmo enquadramento,
com Abel adotando uma postura fria e cuidando do vazamento do segundo líquido,
como se refletindo a lição que aprendeu durante a projeção. Por mais que não se
deseje isso, quando se está no mundo de negócios, seja de combustível ou
qualquer outro, a violência sempre é um efeito colateral.
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